Uma audiência da Comissão Estadual da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo e da Comissão da Verdade da Associação Paulista de Saúde Pública discutiu ontem (22), em São Paulo, a atuação do Instituto Médico-Legal (IML) durante a ditadura militar. Segundo as comissões, o IML emitiu laudos falsos sobre mortes de militantes políticos e praticou diversas fraudes durante a ditadura para ocultar a verdadeira causa dessas mortes: geralmente ocorridas após sessões de tortura.
“O IML está claramente catalogado como uma das instâncias e mecanismos da repressão e, portanto, os legistas, como funcionários do Estado, acobertavam [as mortes] dizendo que não [houve tortura], dizendo que era suicídio. O caso mais famoso foi o do jornalista Vladimir Herzog”, disse Carlos Botazzo, coordenador da Comissão da Verdade da associação.
Um dos casos é do jornalista e militante político Luiz Eduardo da Rocha Merlino, morto em 1971, durante o regime. Merlino integrou o Partido Operário Comunista (POC). Foi preso em 15 de julho de 1971, em Santos, e levado para a sede do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operação de Defesa Interna (DOI-Codi), onde foi torturado por cerca de 24 horas e morto quatro dias depois. Para a família, o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI-Codi do Segundo Exército, foi quem ordenou as sessões de tortura que causaram a morte de Merlino.
A versão oficial da morte de Merlino diz que ele se atirou de um carro durante uma tentativa de fuga. A versão foi endossada pelo Instituto Médico-Legal, em laudo assinado pelo médico legista Abeylard de Queiroz Orsini, que omitiu as agressões sofridas pelo jornalista nas sessões de tortura. Na década de 1990, peritos revelaram inconsistência no laudo de Orsini.
“Ele foi preso na noite do dia 15 e, segundo testemunhas, foi torturado por 24 horas seguidas. Recolhemos testemunhos de que ele foi arrastado, o que demonstra que ele não conseguia sequer ficar em pé. E temos o depoimento de uma pessoa que ficou com ele na cela solitária, e que contou que, no começo, ele ainda estava falando o que tinha acontecido, mas que pouco a pouco ele foi perdendo a voz, e que não sentia mais as pernas, urinando sangue. Vários presos disseram também que ele foi retirado da solitária e colocado em uma maca, onde lhe fizeram uma massagem. Testemunhas disseram ainda que ele tinha uma gangrena nas pernas. Depois, viram também ser colocado no porta-malas de um carro para ser levado a um hospital”, disse Angela Mendes de Almeida, ex-companheira de Merlino, durante a audiência ocorrida na tarde de hoje na Assembleia.
O caso do jornalista Vladimir Herzog, morto em 1975, o laudo oficial, assinado por Harry Shibata, Arildo de Toledo Viana e Armando Canger Rodrigues, afirmava que Herzog havia cometido suicídio, apontando como causa morte “enforcamento por asfixia mecânica”. A versão oficial sempre foi contestada pelos parentes. Depois de anos de luta para rever a versão sobre a morte de Herzog, no ano passado a família do jornalista recebeu um novo atestado de óbito que trazia como causa da morte “lesões e maus-tratos sofridos durante o interrogatório nas dependências do Segundo Exército, DOI-Codi”.
Há também a morte do ex-militante político Luiz Hirata, ocorrida em dezembro de 1971. Um laudo oficial dizia que Hirata foi morto durante uma fuga. Mas, segundo Eládio José Campos Leme, que ficou preso com Hirata na mesma época, ele morreu após sessões de tortura no pau-de-arara. “Deixaram ele muito tempo no pau-de-arara. E o cara [o torturador] batia com um pedaço de madeira nas costas dele. Quando foi levado para a cela, ele [Hirata] tinha uma lesão profunda nas costas. Com o passar dos dias, ele estava ficando inchado e com retenção de líquido. Achei que aquilo era um problema renal. E aquilo foi se agravando. Ele ficou mal, semiconsciente. Passou algum tempo e, no dia 16 [de dezembro], foi retirado da cela e levado para o Hospital das Clínicas”, disse Leme, durante a audiência.
Denise Crispim contesta a versão oficial sobre a morte do irmão Joelson Crispim, ocorrida em abril de 1970, e que diz que ele morreu em um tiroteio. “O laudo do médico-legista tinha um T, grande, de terrorista, e tinha a descrição da causa da morte. Eles diziam que ele tinha morrido após um tiroteio, com parada cardíaca. Mas em um tiroteio você atira de frente, não de costas. Ele recebeu três ou quatro tiros nas costas”, disse.
Denise também foi companheira de Eduardo Collen Leite, mais conhecido como Bacuri, que, segundo ela, foi torturado por 109 dias. Denise também contesta a versão oficial sobre a morte do ex-companheiro de que ele morreu após um tiroteio no litoral paulista. Ela disse que, quando viu o corpo do ex-companheiro, já no caixão, notou vários hematomas espalhados pelos braços e uma grande marca na cabeça, como se “tivesse recebido um golpe de machado”. “O corpo dele estava destruído, arrebentado. Mas o laudo médico falava de morte em tiroteio, com várias perfurações de bala. E não falava de marcas de tortura. Fala só do corte transversal na cabeça. Mas fala disso como se ele tivesse se chocado com alguma coisa e não que tivesse sido provocada por alguém. Era evidente que ele foi torturado”, disse.
Relatou ainda que Bacuri apresentava também “uma ferida na perna, em estado de gangrena avançada”, acrescentando que há testemunhas que falam que o ex-companheiro morreu no quartel e não em um tiroteio na rua, e que a marca na cabeça era resultado de batidas contra uma pia. Denise disse ter encaminhado um pedido para levar o caso a julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos e que, em breve, a corte deve se pronunciar sobre o caso.
A Comissão da Verdade da Associação Paulista de Saúde Pública apontou 51 mortes de presos políticos em que foram constatados fraudes nos laudos oficiais. Este levantamento foi entregue oficialmente hoje à comissão da Assembleia Legislativa paulista. Elas se referem a mortes ocorridas em São Paulo, com laudos que foram contestados pelos parentes e peritos da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, e com fotos que demonstravam sinais de tortura.
Segundo a médica Elzira Vilela, uma das coordenadoras do trabalho, dos 51 casos analisados, a comissão apurou que as “versões oficiais” apontavam que sete mortes foram atribuídas a suicídios, 37 em tiroteio, duas por atropelamento e o restante por diferentes versões. “O[ex-militante político] Alexandre Vannucchi tinha [um laudo com] uma versão de atropelamento e, uma segunda versão de suicídio com lâmina de barbear”, disse. “Todas versões extremamente cínicas”, acrescentou a médica, durante o seu depoimento na audiência pública.
Segundo ela, os elementos que levaram a confirmar que os laudos oficiais eram falsos são os depoimentos de presos e de parentes, além de fotos dos corpos encontradas, por exemplo, no IML. Contribuíram também os trabalhos feitos por peritos da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos. “Foi um trabalho muito criterioso e cuidadoso para que não cometêssemos nenhuma falha. Acredito até que possamos ter deixado de incluir alguns laudos, mas não incluímos laudos que não são falsos”, disse em entrevista à Agência Brasil.
O legista Isaac Abramovitch, já morto, é, segundo levantamento, o perito que mais assinou laudos falsos durante a ditadura militar, com 22 casos, seguido por Orlando José Bastos Brandão e Abeylard Queiroz Orsini, que assinaram 11 laudos, e por Harry Shibata, com oito laudos. Segundo Elzira, 17 dos legistas que são apontados pelo trabalho como responsáveis pela fabricação de laudos falsos na ditadura militar ainda estão vivos. “Os legistas mortos deveriam ter seus nomes noticiados. Mas o Shibata, por exemplo, está vivo. O Orsini está vivo. Todos estes assinaram mais que um laudo, e deveriam ser interrogados. Voluntariamente eles não viriam, mas a Comissão Nacional da Verdade deveria convocá-los”, cobrou.
Botazzo reforçou o pedido de Elzira, acrescentando que os legistas vivos e os que estão mortos devem ser todos condenados. “Eles precisam ter um processo no Conselho Regional de Medicina e o registro deles, como médicos, cassados”.
Procurada pela Agência Brasil, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, que responde pelo Instituto Médico-Legal, ainda não se manifestou sobre a conduta do órgão durante a ditadura militar.