Quando Bento Gonçalves se encontra com os Guarani
Elaine Tavares – Adital
Rio Grande do Sul. Beira do Rio Camaquã. 1600. Já ia um século da ocupação de Pindorama, mas ainda viviam pelas imediações do rio e da Lagoa dos Patos, os índios Guarani, chamados pelos brancos de Carijós, bem como os chamados Patos. Eles tinham avistado os primeiros homens brancos em 1532 quando uma nau portuguesa entrou pelo sangradouro da Lagoa dos Patos. Receberam os estranhos com hospitalidade. Durante muito tempo os interesses dos brancos se voltaram para regiões mais ricas e essas etnias seguiram vivendo em relativa paz. Quando raiou o século XVIII começaram a chegar algumas famílias propondo-se fixar no sul do novo mundo e os indígenas começaram a se mover. Muitos foram mortos, outros escravizados, e uma boa parte fugiu. No início do 1800 a região já tinha vários agrupamentos de famílias dispostas a desbravar o que chamavam erradamente de “terra de ninguém”.
A chegada de Dom João VI ao Brasil em 1806 deu novo ímpeto para a ocupação de terras consideradas “vazias”, e muitos de seus apadrinhados conseguiram grandes fatias. Um deles foi o alferes Joaquim Gonçalves da Silva, que recebeu a Sesmaria do Cordeiro, na beira do mesmo rio onde se banhavam desde há séculos, os índios Guarani. Joaquim passou a ser dono de terras que a vista humana nem podia alcançar. As 400 braças de terra viraram quatro grandes fazendas: da Barra, do Brejo, Paraíso e Cristal. E foi ali, nas suas terras, que nasceu a cidade de Camaquã. O senhor das terras da beira do rio dos Guarani, mais tarde veio a ser o pai de um dos nomes mais cultuados no estado gaúcho: Bento Gonçalves, líder da revolução farroupilha (1835).
Por aqueles descampados, no que hoje é a cidade de Triunfo, nasceu Bento e foi na estância Cristal que ele iniciou sua trajetória de homem do campo e da guerra. Diz a sua biografia que seu amor era pelo campo, mas uma briga que acabou com a morte do oponente levou o jovem Bento a se alistar no exército. Peleou nas campanhas cisplatinas (1811-1812 e 1816-1821) e também na Guerra de 1825. Foi soldado obediente da coroa até 1834 quando foi denunciado como rebelde. Deputado eleito em 1835, ele lidera a Revolução Farroupilha que começa em 20 de setembro do mesmo ano e dura 10 anos, inaugurando a primeira república em terras portuguesas: a República Rio-grandense.
O tempo passou, a revolução passou, e a família de Bento seguiu dominando toda a região. A cidade de Camaquã cresceu e dela desmembrou-se outro município, em 1988: Cristal, que leva o nome da famosa sesmaria. A cidade é hoje conhecida por abrigar o Parque Histórico General Bento Gonçalves, criado em 1972, um espaço de 280 hectares de mata nativa, açudes, campos e banhados. Região de fundamental importância na revolução farroupilha o parque ainda revela as trincheira cavadas pelos rebeldes e guarda a réplica da casa original do general, na qual ele viveu os últimos anos de vida, hoje transformada em museu.
Pois é justamente esse parque que agora é alvo de uma outra batalha. Ali, surgiu a ideia de criar um espaço temático indígena, em honra dos povos que habitaram o lugar bem antes do homem branco chegar.
O espaço Mbyá Guarani
O projeto foi desenhado por Pedro Eginio Leites de Alexandre, hoje diretor do Parque, que é vinculado à Secretaria de Estado da Cultura. Como a região abriga atualmente duas Tekoas Mbyá Guarani, pareceu natural que o parque pudesse conter elementos culturais dessa etnia. Pedro lembra que em 2012 o museu do Parque Bento Gonçalves realizou uma exposição fotográfica em parceria com o Museu do índio, do Rio de Janeiro, chamada “Os índios de Darcy Ribeiro”. Nesse evento, além da exposição, foi criada uma programação muito rica de ações educativas sobre a questão indígena. Por conta disso, foi realizado um seminário na cidade de Camaquã, que é a cidade polo na região, buscando disseminar o conhecimento sobre a etnia. Naquele oportunidade as comunidades Mbyá Guarani foram convidadas para participar do seminário e para expor sua arte e cultura. E foi a partir desse momento fecundo, de rodas de conversas, que foi se desenhando a ideia de criar um núcleo de preservação da cultura e de apoio aos povos indígenas.
A movimentação seguiu devagar e, mais tarde, foi criada uma ala indígena dentro do próprio museu Bento Gonçalves, para onde foi levado um acervo de cestaria que estava subaproveitado no Museu de Camaquã. “Eu estava no museu de Camaquã montando uma exposição sobre Luiz Carlos Barbosa Lessa e vi o material. Me disseram que o material não tinha nada a ver com a instituição. Não me contive e pedi que cedessem os cestos para o nosso museu. Imediatamente me entregaram tudo”, conta Pedro Alexandre. A partir desse material foi criada a ala Guarani dentro do Parque Bento, onde também foram realizadas outras ações educativas.
Pouco tempo depois, o governo do Estado trouxe uma família Guarani para conhecer o Parque, sem sequer saber que ali havia um trabalho de recuperação da cultura daquela etnia. Eles conheceram o museu e ainda deixaram alguns presentes que aumentaram o acervo da ala. Mais tarde, o diretor do parque, Pedro Alexandre, foi comunicado de que havia a intenção de alocar, dentro do território do parque, algumas famílias Guarani. Segundo os representantes do governo estadual, havia uma dívida com essa etnia, por conta de obras realizadas e desalojamentos e o espaço da velha sesmaria Cristal parecia um bom lugar para a comunidade.
Os dias se passaram e a comunidade chegou. Hoje são cinco famílias fixas e outras flutuantes, pois é da tradição Guarani o caminhar pelo território. Muitas ideias fervilharam na cabeça de Pedro Alexandre, mas foi no contato cotidiano com as famílias e as lideranças que começou a se delinear uma ideia que contemplasse a história do Rio Grande Farroupilha – representada pelos donos das terras, Bento Gonçalves, e um Rio Grande indígena. Foi um momento muito rico de construção de uma nova narrativa sobre a história do Rio Grande do Sul. Aquele espaço geográfico não começara com os “gaúchos”. Era ocupado desde há dois mil anos por um povo que tinha uma organização política e uma rica cultura.
O espaço temático
Pedro conta como tudo pareceu se encaixar: “Se Bento Gonçalves conseguiu carimbar este chão com apenas 57 anos de vida, o povo Guarani poderia contribuir muito mais com sua história de dois mil anos. Era hora de dividir aquele espaço”. Segundo ele, estava nas mãos dessa ação conjunta – Parque e Guarani – garantir a compreensão dessa história através de ações educativas e da organização de um acervo cultural.
Mas, enquanto no espaço do parque, os administradores e a comunidade Guarani sonhavam e arregaçavam as mangas para dar início a esse processo de recontagem da história, na cidade de Cristal começaram a aparecer os obstáculos. A prefeita da cidade moveu céus e terra para impedir a criação de um espaço temático Guarani dentro do Parque Bento Gonçalves. Houve até audiência pública, liderada por ela e com a presença de pastores de igrejas pentecostais, para discutir o tema. Jornais, rádios, meios de comunicação, tudo estava contra. Era como se misturar Bento com os Guarani fosse uma heresia. Foram dias difíceis, mais a proposta se manteve em pé e agora já está esboçado o projeto. “O povo Guarani é muito querido no trato com as pessoas. Assim, eles foram visitando a cidade, conversando com os moradores, e acabaram desarmando os espíritos. Hoje, boa parte daquele preconceito já se dissipou”.
A ideia agora, que a foi apresentado para as Secretarias de Estado da Cultura, de Turismo, de Desenvolvimento Rural e de Educação, é criar essa ala temática Guarani bem no cerro do Cristal, espaço que guarda lendas do povo ancestral e que se destaca na paisagem de planície. É justamente no seu entorno que todo o espaço será articulado. Na proposta, construída em parceria com os Guarani e representantes de outras etnias indígenas, bem como com indigenistas, deverá ser erguido um pórtico de madeira bruta, servindo como portal de entrada de um mundo ancestral, mas que segue vivo na cultura. Haverá também uma cerca de madeira roliça, feita de eucalipto, conforme desejo dos Guarani, que envolverá o lugar, onde estarão as árvores sagradas, as plantas medicinais e os elementos que guardam as antigas lendas.
Também serão construídas algumas roças, ao estilo Guarani, mostrando o modo de vida comunitário e suas formas de produção. Haverá a demonstração da culinária indígena, a reprodução de uma casa tradicional para que se possa compreender a cultura que se expressa também na construção. Será construída também uma opy (casa de reza), o espaço sagrado da comunidade, onde tudo se cura e ilumina, onde o criador encontra as criaturas.
Ainda será construído um museu específico para a guarda dos elementos culturais e artísticos, um espaço para a mostra do artesanato e um centro de eventos que servirá para encontros, seminários, formação e tudo o mais que a comunidade definir. Esse museu deverá ter a forma de uma casa de joão-de-barro, pássaro típico da região. Haverá ainda espaço para as representações de divindades, dos anciãos, e do fogo da paz. Será erguida uma obra representando o guerreiro Guarani e serão incentivados os grupos de canto e dança.
Tudo isso já está no papel e em processo de preparação. É um grande desafio numa cidade conservadora que tem vivido esse tempo todo da lembrança do grande general farroupilha. Não é coisa fácil para os idealizadores do espaço temático convencer autoridades e comunidade de que as duas memórias podem caminhar juntos. É fato que Bento Gonçalves foi um grande líder, mas também é fato que aquela terra – antes da invasão portuguesa – já abrigou uma vicejante e bela cultura. Toda essa história pode hoje se cruzar e conviver. Isso torna a história um elemento crítico, capaz de alicerçar novos tempos. Compreender a cultura indígena, entender o que se passou e aceitar a presença dessas etnias nos seus espaços tradicionais é construir uma possibilidade concreta de paz. O que aconteceu a mais de 1500 anos atrás não pode ser apagado, mas é possível conviver em harmonia.
É nisso que apostam todos aqueles envolvidos no processo. No parque, tudo parece esperar por isso, as árvores, as flores, os bichos e as gentes. Não resta dúvida de que será uma experiência pedagógica de imenso valor. Não se duvida de que até o espírito do general que, segundo dizem, caminha por ali, já que era fazendeiro por vocação, possa também aprender com os ancestrais Guarani, o valor da vida em comunhão. E que fique claro. Não é uma proposta de composição de classe, coisa que também nunca aconteceu enquanto Bento vivia. É a celebração de um novo tempo, um passo para a convivência harmoniosa de uma história que ainda está sendo escrita.