Minha irmã mais velha foi quem me ensinou a ler. Ela chegava da escola e fazia os deveres numa pequena lousa de “brinquedo”, fazendo as vezes de mestra, ensinando. Eu, olhuda e atenta, aprendia. Mal sabia ela o tanto de bem que me fazia. Tinha cinco anos quando fui levada para a escola pela nossa vizinha, Maria Tereza, que era professora. O colégio era longe, ficava no bairro do Paso, bem na beira do Rio Uruguai, e a gente ia de ônibus. Pelo caminho, eu vislumbrava uma cidade diferente da que se via pelo “centro”. O quartel, enorme, se estendendo por metros a fio, os guardinhas parados vigiando o nada, as casinhas pequenas, os pátios cheios de bergamoteiras, as pessoas sentadas na varanda, as mulheres varrendo a calçada, a gurizada correndo pelas ruas de chão. A Escola Municipal Francisco de Miranda tampouco era diferente do bairro onde se encontrava. Simples, com partes de madeira, carteiras velhas. A diferença é que tinha, bem na entrada, a foto do grande precursor das batalhas de libertação nessa nossa imensa Abya Yala: Francisco de Miranda. Imagino eu que foi ali que meu sentido de pertencimento a essa américa baixa foi se formando.
Na hora do recreio, a gurizada se espalhava pelo campo enorme que havia em frente a escola e a maior aventura era correr até o casarão da esquina para comprar picolé. Naquelas horas de folguedo também era possível se misturar às crianças do bairro, muitas delas com voz argentina. Essa coisa boa de viver na fronteira. Uma mistura de línguas e costumes. Voltar para casa, tão distante da escola, era sempre triste. Era como adentrar outro mundo, um mundo que não tinha o encantamento da vida do Paso. Foi assim que me apeguei aos livros. Por sorte, meu pai tinha pena dos vendedores de livros que batiam à porta, com sua algaravia de provações, e comprava tudo o que ofereciam. Assim, desde bem pequena tive contato com o que há de melhor da literatura nacional. Coleções inteiras com as obras de Machado de Assis, Aluísio de Azevedo, Castro Alves, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos. Também chegavam livros sobre os Incas, Maias, Astecas, os povos africanos, os grandes filósofos, os mitos gregos. A minha casa era um mundo encantado.
Foram os livros também os responsáveis pela minha tristeza. De tanto conhecer as coisas do mundo, fui ficando macambúzia. Tanta impotência com os dramas humanos. Como entender a destruição dos indígenas? Ou a dor de um continente inteiro, como o africano? Como explicar a violência do nazismo? Por que havia tanto mal, tanta miséria, tanto aniquilamento? Minha mãe, católica praticante, dizia: “são os desígnios de deus”. Mas, eu, desconfiava. Se deus era puro amor, aquilo não era obra dele. Parecia evidente que era obra humana. Mas, por quê? Não tinha a resposta. Lia mais e mais, e nada. Decidi que não poderia ser alegre com tanta tristeza nesse mundo. Passei muitos anos assim, mergulhada na desesperança.
Todo esse pano de fundo me levou ao jornalismo. Amante das palavras, a vida só parecia fazer sentido quando eu mesma juntava as letras e contava as histórias. Se não havia como salvar as pessoas de tanta tragédia, pelo manos narrá-las, para que não se perdessem na noite da história. E assim fui, pelos caminhos, re-construindo mundos. Pretensiosa aventura, sempre inconclusa. Já era adulta quando percebi que podia ter direito a algumas alegrias, e re-aprendi a rir com vontade, gargalhar, desfrutar dos pequenos momentos de felicidade que aparecem na vida da gente, num átimo. Esses que valem uma vida.
Ontem, vendo um vídeo que contava a história de um homem – Nicholas Winton – que ajudou a salvar 700 crianças do horror nazista, me abateu a tristeza de outrora. O repórter aludiu ao terror daqueles dias, tão longínquos. E o sábio velhinho redarguiu, ligeiro: “Não se engane, os dias de hoje não são melhores do que aqueles. Falta ética e compromisso”. Bateu como um martelo. Pura verdade. “A humanidade não aprendeu nada”, disse, desolado. E me deixou, assim, nessa tristeza infinda…