O nível de discussão sobre a questão da “elite branca”, que começou com o xingamento à Dilma na estreia da Copa, chegou a níveis tão mirins que fui obrigado a ler frases como “não era ‘elite branca’ porque havia negros também”. Ou mesmo declarações de autoridades reclamando de que o comportamento não pode ser atribuído a tal “elite branca” uma vez que pessoas que também não são ricas estavam no coro.
Antes de mais nada, vale lembrar o que já disse aqui: Vaias, ok. Xingamento, não ok. E, particularmente, eu endossaria o coro de vaias à Dilma em um evento esportivo por motivos completamente diferentes daqueles de parte da elite brasileira presentes nos estádios: inexistência de uma reforma agrária decente, genocídio lento e gradual das populações indígenas, de outras comunidades tradicionais e dos jovens negros nas periferias das grandes cidades, falta de política eficaz de moradia para os mais pobres, a adoção de uma visão de desenvolvimento econômico não-sustentável, excludente e concentrador, o servilismo a setores e grupos como a construção civil, o agronegócio e os fundamentalistas religiosos. Enfim, vocês entenderam.
Os analistas ficaram tão preocupados em explicar o óbvio – que o PT se aliou a boa parte dessa “elite branca” para chegar e se manter no poder, tornando-se, inclusive parte dela, e agora usam descaradamente a polarização de forma eleitoreira – que esqueceram de dizer que esse termo não significa o grupo de pessoas brancas da high society, mas o pensamento hegemônico de elite, notadamente paulista. Que foi formulado, ao longo do tempo, para favorecer diretamente ricos, brancos e brasileiros, mas também é abraçado por pobres, negros ou estrangeiros que enxergam no primeiro grupo um norte a ser alcançado. Do tipo: quando crescer, quero ser igual a eles.
Seria semelhante a acreditar que só homens são formados para serem instrumentos de reprodução do machismo, mesmo que o machismo seja maléfico às mulheres.
Contraditoriamente, não raro, o segundo grupo é contra políticas que o beneficiariam acreditando em um conjunto de justificativas úteis ao primeiro grupo, decantadas através de instituições responsáveis por difundir esse pensamento, como a família, a igreja, a escola e a mídia, tornando-se guerreiros de uma outra classe social.
Enfim, quando o ex-governador Claudio Lembo popularizou o termo “elite branca”, fez um favor ao nominar uma forma de pensamento e não apenas um grupo com determinado fenótipo. Pena que a capacidade de análise abstrata ande ultimamente em baixa.
Vou retomar uma discussão que já havia trazido aqui para falar um pouco dessa “elite branca” mais uma vez. Em uma praia do litoral norte de São Paulo, um casal passou, sorridente e de mãos dadas, à minha frente, seguido de perto por duas babás, cada uma cuidando de dois pimpolhos, devidamente uniformizadas na areia, em uma adaptação contemporânea de uma gravura do Brasil colonial de Debret ou Rugendas.
Babá que é obrigada a ir uniformizada à praia ou ao clube com os filhos dos patrões choca muita gente. Parece que o objetivo do desnecessário uniforme em um espaço público é deixar claro quem é quem nesse grande teatro social. Tanto que organizações não-governamentais defendem que a imposição do uniforme branco deixe de vigorar. Há clubes que refutam dizendo que se os sócios quiserem vir com babá em roupa normal, tudo bem, desde que usem sua cota de entrada para “convidados”. Outros pegam depoimentos das próprias babás dizendo que preferem assim. Da mesma forma que quem nunca provou bife ancho vai preferir pelanca cozida.
Melhor seria colocar a hipocrisia de lado e amarrar logo uma bola com correntes ou tatuar no braço o nome da família-proprietária da pessoa em questão. Com henna, é claro, para poder apagar e registrar outro nome depois. Porque o trabalhador pode até ter obtido a garantia legal da liberdade em maio de 1888, contudo, não raro, segue como instrumento descartável de trabalho.
A parte da titica desse pensamento hegemônico que está flutuando todo mundo vê. É feia, recebe críticas de todos os lados. O horror, o horror! O drama é o que há no fundo e precisa de uma observação mais atenta para ser decifrado. E nem sempre uma descarga manda embora o que há nesse fundo. Ok, poderia ter usado um iceberg na analogia. Seria mais fino, mas definitivamente não provocaria o mesmo efeito.
Já contei aqui que que fui convidado a ir a um clube da classe alta paulistana tempos atrás. Não sei se foi o horário em que fui ou o azar que tive, mas as únicas pessoas negras presentes eram as babás uniformizadas e os empregados do estabelecimento. E, olha que eu procurei… É claro que o clube possui sócios negros, mas esses devem ser proporcionalmente tão poucos que não aparecerem em determinado horário. E muitas pessoas, independentemente da cor da pele, compartilham dos mesmos elementos de pensamento de “elite branca”.
Não creio que só a pequena participação relativa de negros entre o 1% mais rico de São Paulo- menor que a proporção de sua presença na sociedade – seja a causa do sumiço dos negros em locais dessa elite. As decorrências indiretas da desigualdade étnica-social também estão presentes e se realimentam. A herança da escravidão se faz sentir ainda porque ela é constantemente reinventada, não mais atrelada à cor da pele, mas ainda consequência desta. Muitas das adesões dos clubes, por exemplo, vêm através de conhecidos, pessoas que apresentam seus amigos que, por sua vez, acabam pleiteando um título.
Ou seja, conectamos nossa rede social (atenção, povinho que acha que o mundo começou com o Facebook e o Twitter, estou falando de rede em sentido mais amplo) em outra. Traduzindo: qual a chance de você, sendo muito rico em São Paulo, ter no seu círculo de amigos próximos pelo menos a mesma quantidade de negros e de brancos? “Ah, mas os negros também segregam!”
Faça-me um favor a si mesmo, pare de falar caca e vá entender a história do movimento Hip Hop na capital paulista.
E sabendo como funciona a formação da nossa elite (segregando, separando, limitando, excluindo), a chance de um branquinho fazer contato com um negrinho quando criança é mínima. Fiz jornalismo na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e só tive uma amiga negra na turma. Há classes em que dou aula na PUC sem negros.
“Ah, mas eu tenho amigos negros.” Pode até ter. Mas você tem amigos negros a ponto de acabar com todo o preconceito que lhe foi ensinado ou incutido desde que era um mamífero genérico com cara de joelho?
A desproporcionalmente pequena quantidade de negros como representantes no Congresso Nacional, nas chefias de grandes empresas, como professores de universidades de prestígio, em grandes bancas de advocacia ou à frente de grandes hospitais e, por que não, no comando de grandes redações de jornalistas, deveria chocar tanto quanto as mucamababás em questão.
Estou pedindo que fechem os clubes da elite paulistana? Nop. São frequentados por pessoas ótimas, conscientes da sua cidade, mas – como meus amigos sócios mesmo atestam – não raro acabam funcionando como um local de reprodução de determinados comportamentos detestáveis, mesmo que informalmente. Local de circulação e reafirmação daquele pensamento hegemônico que citei acima.
No mais, considero aqueles punhados de riqueza cercados de muros por todos os lados como uma realidade paralela. Ou uma viagem de ácido por assim dizer, daquelas que, no final, a pessoa só consegue balbuciar: “Mano, lá dentro é um mundo muito doido! Eu vi coisas que não fazem sentido algum!”
Queria viver em uma cidade em que não houvesse cidadãos de primeira e segunda categorias. Ambientes mais coloridos de pessoas mas também de ideias.
Só não sei se todo mundo ia querer viver nessa cidade também.