Cadastramento de manifestantes: legal ou arbitrário?

policial cadastrando CE

Por Natalia Castilho, Patrícia Oliveira e Priscylla Joca, advogadas da RENAP, em Na Rua

A Praça da Bandeira, em Fortaleza, fica ao lado da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, bem no centro da cidade. O lugar já viveu muitas manifestações e, há poucos dias, em 21 de junho, foi palco de constrangimentos e ilegalidades. 20 jovens reunidos no ato articulado pelo Fórum Permanente pelo Passe Livre – FPL foram revistados e passaram por um tipo de “cadastramento” feito pela Polícia Militar ainda durante a concentração, antes mesmo do ato ter se iniciado. Acrescente ao cenário um considerável número de viaturas, de diferentes unidades policiais (COTAR, Ronda, COTAM) que se encontravam no local, além de uma unidade do Caveirão, veículo blindado e munido de canhão d’água, o qual estava com o motor ligado durante quase toda operação (de acordo com notícia veiculada na fanpage do “Na Rua”).

Policiais, cujo efetivo era bem maior que o número de manifestantes, interrogaram os presentes sobre: nome completo, idade, endereço, nome da mãe. No vídeo (entre 25seg e 1min25seg), vê-se um policial questionando um manifestante sobre se este porta algum documento, ao que o manifestante responde afirmativamente. Contudo, o policial não pede para verificar a identificação civil e segue fazendo uma série de questionamentos sobre dados pessoais do manifestante. Quando ele se recusa a fornecer algumas informações, o policial retruca dizendo:  “Macho, tu não sabe onde tu mora, tu não sabe o nome da tua mãe. Tu é de onde? Num tem documento, tá totalmente clandestino aqui no Estado do Ceará”.

No mesmo vídeo (a partir de 1min30seg) outro manifestante afirma que o procedimento da polícia foi de pedir documento de identificação civil e dados dos manifestantes. Durante o desenrolar desses acontecimentos, uma advogada da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares no Ceará (RENAP/CE), que estava acompanhando o caso, telefonou para o plantão do Ministério Público, sendo informada pelo promotor de justiça que a polícia poderia colher dados dos manifestantes que estivesse usando máscaras, com base na Recomendação n. 001/2014/PGJ/CE.

Ocorre que a recomendação não se refere expressamente à possibilidade de coleta de dados dos manifestantes mascarados, apenas diz que sejam realizadas revistas quando existirem indícios de prática delitiva ou fundada suspeita (item I, alínea “b”), bem como que sejam tomadas as medidas pelo Setor de Inteligência da Polícia Militar, em colaboração com a Polícia Judiciária, especificamente para a identificação dos indivíduos violentos destoantes da manifestação pacífica e praticantes de ilícito.

Contudo ainda mais grave: segundo testemunhas no local, jornalistas que acompanharam o protesto, nenhuma pessoa abordada pelas autoridades policiais estava mascarada. O que dizer sobre o que aconteceu, então?

O artigo 5º, inciso LVIII, da Constituição Federal enuncia que o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei. O civilmente identificado é aquela pessoa que apresenta RG ou outro documento que ateste sua identidade. Os únicos casos em que pode haver identificação criminal são definidos pela Lei n. 12.037/2009: quando o documento civil (RG, por exemplo) não puder servir à identificação (por rasura, indícios de falsificação etc.), ou quando for necessária a identificação criminal para fins de investigações policiais. No entanto, o “cadastramento” sequer pode ser considerado como identificação criminal, haja vista que essa se dá por ocasião da prisão em flagrante delito ou indiciamento em inquérito policial, através da identificação das digitais e fotográfica, em caso de ser imputado um fato criminoso ao identificado e em não sendo possível a identificação civil, nos termos da Constituição Federal e da Lei 12.037.Se os policiais não estavam realizando nem identificação civil, nem identificação criminal, o que estavam fazendo[*]?

Ora, os poucos manifestantes presentes no ato representavam um número bem menor que o contingente policial. Todos foram devidamente revistados. Muitos apresentaram identificação civil. Reuniam-se pacificamente, o que não corresponde a nenhum ato criminoso. Ao contrário, estavam exercendo o Direito à Livre Manifestação, direito fundamental da pessoa humana (art. 5o, XVI, Constituição Federal). O direito reunião, de liberdade de pensamento e de manifestação tem guarida também em dispositivos internacionais de proteção dos direitos humanos, que possuem status de norma constitucional em nosso ordenamento jurídico[**]. A Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto Internacional de San José da Costa Rica), assegura, em seu artigo 13, o direito à liberdade de pensamento e de expressão. No item 2 desse artigo, destaca-se que esse direito não pode estar sujeito à censura prévia, ou seja, não se podem admitir medidas que venham a restringir previamente o exercício da liberdade de expressão e comunicação.

Além disso, qualquer pessoa sobre a qual recaia fundada suspeita de cometimento de delito é presumida inocente, até que seja legalmente comprovada sua culpa. Essa garantia encontra respaldo na Constituição Federal (art. 5º, LVII) também no artigo 8 do Pacto de San José, o que fundamenta o princípio da presunção de inocência e da impossibilidade de produção de provas que pesem contra si. O cadastramento dos dados de manifestantes pelos policiais também viola essa garantia, pois os mesmos poderão sofrer algum tipo de monitoramento (informaram seus endereços e telefones) sem que haja fundada suspeita de cometimento de qualquer delito sobre tais pessoas.

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU também dispõe em seus artigos 17 e 19 o seguinte:

ARTIGO 17

  1. Ninguém poderá ser objeto de ingerência arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais às suas honra e reputação.
    2. Toda pessoa terá direito à proteção da lei contra essas ingerências ou ofensas

ARTIGO 19

  1. Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões.
  2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou qualquer outro meio de sua escolha.

Também fica no ar o questionamento acerca de como serão esses dados utilizados posteriormente pela Polícia Militar.

Esse cadastramento, ao que parece, vem ocorrendo em outros lugares do Brasil, de acordo com informação dada por uma advogada na fanpage do Coletivo Vinhetando. Isso pode servir ao “mapeamento” de pessoas manifestantes, com o fim de enquadrá-las em práticas delitivas ou de ameaçá-las, de algum modo, em sua liberdade, a fim de que não exerçam mais o direito à livre manifestação.

Poder-se-ia questionar essa última afirmação dizendo que a polícia serve à segurança dos cidadãos e à proteção da res publica e que, portanto, tal não ocorreria. Ocorre que os anais da história não tão distantes registram o que pode ser feito com dados de pessoas cadastrados tendo como base suas ideias e preferências políticas. Vide o cadastro de judeus, comunistas etc. no III Reich alemão e os resultados do Holocausto, assim como os arquivos utilizados na época da ditadura militar e os terríveis relatos de perseguições políticas, torturas e exílios. Por tudo isso, se estamos diante da prática do “cadastramento” indevido, abusivo e ilegal feito pelas autoridades policiais de pessoas que manifestavam ideias e expressavam posições políticas, quem sabe o quanto isso pode/poderá ameaçar os direitos de manifestantes também em outros momentos não tão claros no presente.

NOTAS:

[*] O artigo 68 da Lei de Contravenções Penais (Lei 3.688/1941), determina que seja multado quem recusar à autoridade (policial, por exemplo) dados ou indicações concernentes à própria identidade, estado, profissão, domicílio e residência, quando isto for justificadamente solicitado ou exigido. Destaca-se que essa lei vem sendo questionada por inúmeros juristas como inconstitucional por ofender o princípios da intervenção mínima e lesividade que informam que o Direito Penal só deve ser usado em conflitos relevantes que não podem ser solucionados de outro modo.Ou seja, a lei não teria sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988, não deveria, pois, estar em vigor. Mas, por hora, ela está. Assim, questionamos: qual seria a justificativa razoável para a solicitação de dados por parte dos policiais?

[**] De acordo com o art. 5º, parágrafo 2º e seguintes da Constituição Federal.

[***] O Código Penal diz que abuso de autoridade é ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder (art. 350), bem como efetuar, com abuso de poder, qualquer diligência (art. 350, IV). A Lei 4.898/1965, que regulamenta aspectos da responsabilização por abuso de autoridade, enuncia que constitui abuso de autoridade qualquer atentado ao direito de reunião (Art. 3º, “h”), bem como o ato de submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei (Art. 4º, “b”).

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