Os protestos se transformam, mas os brasileiros não vão sair das ruas. Um ano depois dos protestos que levaram milhares de pessoas às ruas, os atos continuam. Especialistas avaliam que os atos ganham nova forma
Pedro Marcondes de Moura e Talita Bedinelli – El País
A onda de manifestações que agitou o Brasil desde junho de 2013 ainda está viva nas ruas. Um ano depois de o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), e o prefeito da capital, Fernando Haddad (PT), cederem à pressão das multidões que ocupavam importantes vias de São Paulo, a exemplo do que ocorria no restante do país, exigindo a redução das tarifas do transporte público, o Movimento Passe Livre (MPL), principal protagonista dos atos, reuniu cerca de 1.300 pessoas na avenida Paulista nesta quinta-feira, um número alto em comparação a outros atos ocorridos depois da onda de manifestações do ano passado.
Os manifestantes, que querem a gratuidade das tarifas, percorreram a cidade pelas principais avenidas e o ato culminou com a destruição de vidros de bancos, vitrines de lojas e carros de luxo expostos em concessionárias, uma ação dos adeptos da tática Black Bloc, enquanto membros do MPL tentavam frear a violência, e a Polícia Militar, que muitas vezes foi criticada pelo excesso de violência, permaneceu completamente passiva.
Outra vez, os principais agentes das manifestações de 2013 se encontravam nas ruas. Mas o que mudou neste um ano desde que os protestos eclodiram? Para especialistas ouvidos pelo El País, o movimento gerado a partir de junho se transformou, fortaleceu os atos de outros grupos e deu visibilidade a novas causas. Os Black Blocscontinuam na ativa, mas já não estão em paz com os movimentos sociais. E os movimentos que ganharam força desde então estão cada vez mais distantes dos partidos políticos.
A saída às ruas
“Os atos mudaram as formas de mobilização social” – PABLO ORTELLADO (professor da USP e autor do livro 20 centavos)
Os protestos, ao contrário do que muitos dizem, não foram surpreendentes. Há dez anos temos assistido revoltas relacionadas ao transporte em outras capitais. Mas isso nunca tinha acontecido no centro da política, que é o eixo Rio-São Paulo, que tem a capacidade de chamar a atenção. A tática do Movimento Passe Livre também foi diferente em São Paulo dessa vez: organizou muitos protestos com intervalos curtos entre eles. São Paulo contaminou o resto do país. E eles foram muito bem sucedidos, já que a redução das tarifas atingiu 70% da população das grandes cidades. E também porque fizeram com que uma série de outros processos tivessem início e visibilidade, como as pautas dos sem-teto.
Esse foi o grande legado dos protestos. Durante a mobilização, 5% da população do país saiu às ruas, um número muito alto, que acontece em grandes momentos como revolução, levantes populares. Não dava para esperar que esse nível de mobilização continuasse de forma permanente. Mas ele trouxe novas formas de mobilização social e impulsionou uma série de mobilizações importantes, mudou o patamar de mobilização social e a visibilidade desses movimentos. É um processo de construção que não está ligado a partidos políticos, como ocorreu nos anos 1970, 1980, com a formação do Partido dos Trabalhadores (PT). E o que impede que isso aconteça novamente é que a experiência do PT já foi bem-sucedida, com a conquista do poder político, mas malsucedido, porque a profunda mudança social que se pedia não veio. A tendência, então, é que esses movimentos continuem, longe dos partidos.
O Passe Livre
“A população percebeu que a ação política não depende de agentes externos” – LUCAS MONTEIRO (integrante do MPL)
As mobilizações de junho foram o resultado de oito anos de trabalho do Movimento Passe Livre, o que permitiu que o grupo tivesse legitimidade e articulação. Além disto, tínhamos um plano bem preparado de como barrar o aumento das tarifas, inspirado na experiência de outras cidades. Tinha de ser um processo curto, de no máximo três semanas, e firme – de não recuar diante da opressão policial. Fizemos um planejamento e saiu da maneira esperada. A mobilização também ganhou força por causa do valor material, já que o custo do transporte é muito alto e injusto, e pela perspectiva do sofrimento das pessoas que vivenciam as condições do transporte público ou não têm acesso para chegar a partes da cidade que construíram.
Nós sabíamos que o que ocorre em São Paulo tende a se repetir em outras cidades do Brasil e que, se caísse [o preço da tarifa] em São Paulo, cairia em outros lugares. Mas é verdade que tem coisas que não tínhamos como imaginar, como 40.000 pessoas ocuparem a prefeitura de São João Del Rei, (em Minas Gerais). Em mais de 100 cidades, a população tomou o controle, ainda que de maneira temporária, de como funcionava o sistema de transporte coletivo. Isso [o êxito das manifestações] intensificou um novo ciclo de ocupações urbanas. Entre julho e outubro foram cerca de 100 ocupações. A população percebeu que a ação política não depende de agentes externos nem precisa ter uma organização hierárquica. O tema quente [para o futuro das manifestações] é o modelo de cidade que vamos ter. Que tipo de cidade irá ser construída agora e como os trabalhadores irão se apropriar deste espaço.
Os movimentos sociais
“A pauta da reforma urbana está forte” – GUILHERME BOULOS (coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto)
O tamanho dos protestos foi totalmente inesperado mesmo para quem estava organizando, o MPL. Foi um processo que cresceu muito pela ação repressiva da Polícia Militar. As manifestações, em São Paulo, passaram de uma média de 5.000 pessoas para centenas de milhares.
Junho, certamente, teve um efeito de estímulo e gatilho para outras causas sociais, incluindo o MTST. Foi uma causa vitoriosa que mobilizou a sociedade. A pauta (de redução de tarifas do transporte público) saiu vitoriosa. Uma pauta que está muito forte , mais ampla que a moradia, é a reforma urbana. Ela abrange moradia, mas também educação, saúde, transporte. Nós acreditamos que pode reverter a exclusão, a segregação e a privatização dos serviços urbanos.
A Polícia Militar
“A violência mostrou que a polícia precisa mudar” – GUARACY MINGARDI (FGV e Fórum Brasileiro de Segurança Pública)
O que aconteceu com os protestos de 2013 mostrou não só a insatisfação da população brasileira, mas também que não temos um aparelho policial preparado para lidar com esse contingente. Neste período, ou a polícia se ausentou, como voltou a acontecer nesta quinta-feira, ou foi muito violenta. Ela usou muitas táticas contra os Black Blocs, mas em nenhuma teve 100% de acerto. A violência exacerbada da polícia na manifestação de 13 de junho do ano passado fez com que os protestos aumentassem.
A Polícia Militar (PM) tem um afastamento muito grande da população. Ela foi criada no final dos anos 60 pelos Militares, que queriam controlar as forças policiais. Esses oficiais foram treinados como soldados e essas coisas não desaparecem de uma hora para outra. A atuação violenta da polícia nos protestos, com a classe média, evidenciou isso e serviu para mostrar que a polícia precisa mudar. Mas existe um lobby muito grande dos policiais para que isso não aconteça, então a oportunidade vem e vai, porque eles têm esse poder, porque existe um discurso de que a PM é insubstituível, porque ela é muito mais preocupada com a ordem pública do que com a criminalidade. Se a sociedade não se organizar para isso, não vai mudar. Ou algum partido de grande representatividade está interessado em alterar a polícia?
Os Black Bloc
“Os coletivos têm dificuldade de lidar com os Black Blocs” – ESTHER SOLANO (professora da UNIFESP que estuda a tática Black Bloc)
Os Black Blocs tiveram um papel protagonista nos protestos. Não tanto por eles, mas pela violência que eles usam, que é um espetáculo midiático. Vários dos adeptos da tática já estavam presentes nas manifestações em junho, mas muitos a adotaram após a atuação da polícia, como uma reação à violência. Depois, virou uma moda. Mas já surge uma dificuldade dos movimentos de lidar com eles. O MTST já os rejeitou. O MPL já se diferenciou deles nesta quinta-feira, os metroviários na semana anterior.
Há um sentimento contraditório. Os coletivos sabem que quando eles aparecem todo mundo esquece as pautas dos movimentos, mas eles continuam participando de alguma forma e chamam a atenção dos meios de comunicação. Eles conseguem capa, manchete. A lógica é que eles continuem a participar, até porque a polícia não sabe lidar com eles. Mas está piorando o clima nas ruas, até porque os próprios adeptos dos Black Blocs desprezam os movimentos mais clássicos, sindicais, partidários. É uma convivência complicada. Mas o que os movimentos vão fazer, expulsá-los das ruas?