Por Pedro Cifuentes, em El País
Em 05 de março, na cidade de Bento Gonçalves, logo ao entrar em campo para apitar a partida entre Esportivo e Veranópolis do Campeonato Gaúcho do estado do Rio Grande do Sul, o árbitro Márcio Chagas (Porto Alegre, 1976) escutou um grupo de 20 torcedores gritar para ele “negro”, “macaco”, “volta para a selva, a África”, “escória”, “lixo…”. “Foi uma partida sem o menor problema”, recorda Chagas em conversa com este periódico; “não houve pênaltis, nem expulsões. Absolutamente nada. O Esportivo ganhou por 3 x 2”.
Quando ia para o vestiário o mesmo grupo começou a insultá-lo de novo: “Macaco, filho da puta”. A árbitro parou e se aproximou do alambrado. “No grupelho havia um garoto de 7 ou 8 anos. Perguntei-lhes: ‘Fazem isto na frente de seus filhos? ‘ Me responderam: ‘Lixo, volta para a África’. Tentei acalmá-los, lhes desejei boa semana. Depois de tomar banho, no estacionamento (que era de acesso exclusivo para empregados), vi que as portas do meu carro estavam amassadas. Duas bananas estavam em cima do veículo. Tentei sair com o carro, mas não conseguia. Descobri que existiam outras duas bananas no cano de escapamento”. Chagas pediu então para um bandeirinha que tirasse algumas fotos, porque “sabia que a veracidade dos fatos seria questionada”. Avisou também alguns radialistas. “Os jogadores estavam saindo do estádio, começamos a conversar. Um deles (negro também) em chamou de lado e me disse: ‘Márcio, aqui isto é normal. Às vezes preferimos jogar como visitantes, para que a torcida não nos incomode’. Eu estava abatido, mas pensei: ‘Hoje vou mudar algo, isto não fica assim'”.
Sua primeira decisão, ainda no carro, foi abandonar a arbitragem. Chagas foi para uma delegacia, mas estava fechada por conta do carnaval. Depois tentou fazer a denúncia online, mas o sistema não funcionava. “Lembrava constantemente da polícia que viu tudo no estádio e em nenhum momento lhes chamou a atenção ou quis prender os torcedores”. Aquele incidente não foi o primeiro da sua vida, mas “foi a gota d´água definitiva. Já havia me acontecido outras vezes, fora e dentro do futebol, mas não daquela forma tão covarde. Na minha carreira fui obrigado a expulsar um treinador e um jogador por me chamarem de macaco. Mas aqui não podia me defender. Foram ao estacionamento enquanto eu trabalhava! Estava com vontade de quebrar alguma coisa… Quando vi que não podia fazer a denúncia, decidi recorrer à imprensa. Mandei um texto relatando o quão lamentável é acontecer algo assim no ano de 2014. Fui dormir às cinco da manhã, pensando no meu filho de um ano. Meu pai advertiu eu e meus irmãos de que passaríamos por coisas deste tipo e que deveríamos ter a inteligência para reagir da maneira correta”.
A notícia correu rapidamente pelo Brasil. Chagas pensava que receberia o apoio da federação, “mas não foi assim. A Confederação Brasileira de Futebol se solidarizou, mas somente com palavras: não fizeram nada. O presidente do clube declarou que eu havia inventado tudo. Depois de ter passado por tudo, agora passava por mentiroso!”. O Tribunal Superior do Estado do Rio Grande do Sul, após um recurso do promotor, acabou punindo a equipe local com o rebaixamento, 30.000 reais e cinco partidas com portões fechados. Durante a audiência, o advogado do clube Esportivo sustentou que os danos ao automóvel mereciam uma reparação, mas que chamar alguém de “macaco” não era uma agressão. Chagas manteve seu compromisso de apitar as três últimas rodadas do campeonato, foi eleito pela quarta vez o melhor árbitro do Campeonato Gaúcho e abandonou para sempre o apito. “Encerrei 15 anos de carreira. Foi uma questão de honra”. Duas semanas depois recebeu um convite da rede de televisão RBS para comentar partidas de futebol, atividade que divide com seu trabalho de professor de educação física.
Como explicar a persistência do racismo em um país de herança africana que além disso encontrou em jogadores de cor alguns de seus maiores heróis futebolísticos, como Amarildo ou o “Rei” Pelé? “Desgraçadamente, o Brasil não conhece as raízes de sua construção”, explica Chagas. “Não querem aceitar a participação negra na cultura do Brasil, e sim a de outros estrangeiros (italianos, alemães, holandeses, etc.). A discriminação racial é algo recorrente no Brasil. É um país muito racista… Não existe a democracia racial que se quer vender”. “E o futebol”, prossegue Chagas, “é reflexo da sociedade. Muita gente guarda seus preconceitos e racismo no dia a dia, mas quando vão ao estádio externam tudo o que não conseguem falar por medo de serem identificados. São gatinhos no dia a dia e leões nas arquibancadas”.
Pouco depois da sua aposentadoria antecipada Chagas foi convidado para ir a Brasília pela presidenta, Dilma Rousseff, na companhia de Tinga e Aoruca, dois jogadores que sofreram experiências similares em um intervalo muito curto de tempo. Nesta reunião foi criada a linha gratuita de telefone (138, Disque Igualdade Racial) recentemente habilitada pelo Governo para denunciar estes atos. Os diversos casos sucedidos poucos meses antes da “Copa das Copas”produziram um debate sobre as medidas mais adequadas. A postura mais pedida advogava pela punição dos culpados e do clube proprietário dos estádios. Outra, mais defendida pelo técnico da seleção brasileira Luiz Felipe Scolari, optava por “ignorar ou não fazer publicidade destes idiotas”. Chagas tem muito clara sua posição: “Respeito a opinião de Felipão, mas nunca vai entender a necessidade de levar a público porque não é negro. Nunca será insultado e ofendido desta forma. Hoje é tão poderoso quanto a presidenta Dilma. Não sabe o que é sofrer o repúdio, o desprezo ao entrar em um restaurante… Como se um negro fosse lixo”.
“Olhe ao seu redor”, conclui Chagas: “Que pessoas têm poder hoje? A pobreza tem cor… Minha mãe ainda não sabe, mas eu aos 16 anos não podia entrar na casa da minha primeira namorada. Como se fosse um bandido. Temos que ser valentes e confrontar a realidade para que não aconteça o mesmo com meu filho”.