Comissão da Verdade de SP vai investigar tragédia da Vila Socó. OAB de Cubatão conseguiu desarquivar o caso na justiça e pretende ingressar com ação na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA
Por Lúcia Rodrigues, especial para o Viomundo
Trinta anos depois, o Brasil está prestes a conhecer a verdade sobre o que ocorreu no que pode ter sido a maior tragédia do país em número de mortos. A OAB de Cubatão acaba de conseguir na justiça, o desarquivamento do caso sobre o incêndio da Vila Socó, que matou oficialmente 93 pessoas; segundo a ação movida à época pelo Ministério Público, foram 508 vítimas.
No início da madrugada do dia 25 de fevereiro de 1984 um imenso clarão de fogo se espalhou como rastilho de pólvora pela favela construída sobre palafitas na Vila Socó, em Cubatão, região metropolitana da Baixada Santista, consumindo corpos e barracos em poucos segundos.
Muitas vítimas derreteram e viraram cinza. Não puderam ser reconhecidas por parentes ou vizinhos sobreviventes e, por isso, não foram contabilizadas no número oficial de mortos.
A temperatura no local pode ter ultrapassado os mil graus centígrados devido à enorme quantidade de litros de gasolina que vazaram durante mais de 11 horas por um duto rompido da Petrobras que cortava a favela: 700 mil, segundo dados oficiais, mas que pode ter chegado aos dois milhões de litros de combustível, de acordo com cálculos de especialistas.
Era final da ditadura militar e o regime tratou o caso como assunto de segurança nacional, minimizando os números da tragédia.
Nenhum morador de Vila Socó foi alertado por técnicos da Petrobras sobre o risco iminente de incêndio, apesar de o vazamento ter começado quase meio dia antes do momento da explosão. As vítimas morreram, sem que nenhuma ordem de retirada fosse determinada para evitar a carnificina.
Violação de direitos humanos
Com a reabertura do caso, a OAB de Cubatão pretende ingressar na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, a Organização dos Estados Americanos, até o final do primeiro semestre do ano que vem, para solicitar a responsabilização do Estado brasileiro por violação aos direitos humanos.
No Brasil, a ditadura militar travou a apuração. Nenhum responsável pela tragédia foi punido. “O Tribunal de Justiça inocentou todos os envolvidos”, ressalta o presidente da subseção da OAB de Cubatão, Luiz Marcelo Moreira, autor do pedido de desarquivamento do caso na justiça.
Ele explica que na época, dois promotores do Ministério Público chegaram a ingressar com denúncia contra 24 pessoas, dentre elas o então presidente da Petrobras, Shigeaki Ueki, e o ex-prefeito de Cubatão José Passarelli, mas ninguém foi punido.
“Shigeaki e o prefeito foram alguns dos que conseguiram HC (habeas corpus) para trancar a ação penal”, enfatiza ao se referir aos subterfúgios utilizados pelas autoridades para se eximirem de culpa.
O advogado conta que o crime já prescreveu para as 93 mortes, mas não para as que ainda não foram reconhecidas oficialmente. “Se vier à tona que uma pessoa faleceu, mas não foi contabilizada dentre os mortos, o crime não estará prescrito.”
Ele pretende se debruçar sobre os 23 volumes do processo, que também seriam incinerados em breve, para conseguir elementos para a elaboração da peça jurídica que será encaminhada à OEA. “Vamos levar à Corte para que o Estado seja punido. Cubatão era área de segurança nacional e a ditadura abafou a dimensão da tragédia”, afirma.
No aspecto cível, Luiz Marcelo ressalta que as indenizações para os sobreviventes, além de terem sido irrisórias, também excluíram menores de 12 anos. “Não há no direito brasileiro nem no internacional nada que permita isso. Se o Estado for condenado, todas as vítimas serão indenizadas.”
O número de crianças que viviam na favela é ainda hoje uma incógnita. Na escola próxima à Vila Socó existiam 300, matriculadas, segundo o advogado Dogival Vieira, que à época era vizinho da comunidade e vereador no município. “No dia seguinte à tragédia só apareceram 60 crianças na escola”, afirma, enfatizando que as demais podem ter morrido no incêndio.
Dogival acredita que o número total de mortos supere o apontado, inclusive pelo Ministério Público. “Eram colocados três, quatro cadáveres em um único caixão”, frisa.
Ele revela ainda que um laudo da Cetesb registra que foram jogados sobre o terreno, onde antes estavam erguidas as palafitas, 93 toneladas de cal, sob o pretexto de evitar doenças.
“Não tem o menor sentido, uma quantidade tão grande de cal, se o número de mortos fosse só de 93 pessoas”, justifica.
De acordo com ele, três anos após o incêndi, ainda foram encontrados restos humanos no terreno, apesar de todo o esforço dos militares para apagar os vestígios das mortes.
Inferno
As cenas dantescas presenciadas por quem acompanhou o rescaldo do incêndio dão a ideia do inferno vivido pelos moradores. Famílias carbonizadas foram encontradas abraçadas dentro das casas, corpos de pessoas que tentaram diminuir a intensidade da dor provocada pelas queimaduras, e se atiraram na água do mangue, tiveram parte dos membros inferiores derretida pela chama da gasolina — que também ardia ali. Um feto visto na barriga da mãe também chocou quem foi à Vila Socó.
O repórter da Rede Globo Tonico Ferreira foi um dos que cobriram a tragédia para o telejornal da emissora. Ele recorda a indignação que sentiu e deixou transparecer durante a entrevista coletiva com o representante da Ciesp, o Centro das Indústrias de São Paulo em Cubatão, Nei Serra, logo após a tragédia.
“Fiquei com muita raiva. Queria pegar o microfone e bater nele. Perdi o distanciamento de repórter”, afirma. Santista, ele conta que já tinha feito uma série de entrevistas com Serra sobre o risco de acidentes na área, mas que o empresário sempre negava essa hipótese.
Tonico explica que governo e indústrias não se preocupavam com a questão ambiental nesse período. “Os militares diziam que isso era assunto de país rico. Era essa a mentalidade na época. Eles nunca ouviram a população. Não havia conselhos populares. Essa foi a base do acidente da Vila Socó”, reforçou o repórter, na audiência pública sobre os 30 anos da tragédia, que ocorreu na quarta-feira, 11, na Assembleia Legislativa, durante o encontro da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo.
Crime social
Como a tragédia aconteceu no período previsto pela investigação dos crimes da ditadura, a Comissão Paulista da Verdade também atuará para desvendar esse episódio.
O deputado Adriano Diogo (PT-SP), que preside a Comissão, vai solicitar informações junto aos órgãos envolvidos no caso, como Petrobras, Prefeitura de Cubatão, IML e Serviço Funerário.
O parlamentar informa que os dados obtidos também serão repassados à Comissão Nacional da Verdade, para serem anexados ao relatório final do grupo.
“Fará parte do capítulo sobre as empresas, para demonstrar como estas agiam durante a ditadura. Tem muita coisa a ser apurada, essa história não foi concluída”, ressalta Adriano.