Alessandra Cardoso e Ricardo Verdum
A expressão orçamentária da política de saúde indígena é composta por três ações: i) a ação (20YP) “Promoção, Proteção, Vigilância, Segurança Alimentar e Nutricional e Recuperação da Saúde Indígena” (Programa 2065), com R$ 1 bilhão; ii) a ação (7684) “Saneamento Básico em Aldeias Indígenas para Prevenção e Controle de Agravos” (Programa 2065), com R$ 27 milhões; iii) parte da ação (7656) “Implantação, Ampliação ou Melhoria de Ações e Serviços Sustentáveis de Saneamento Básico em Comunidades Rurais, Tradicionais e Especiais para Prevenção e Controle de Doenças e Agravos” (Programa 2068). Neste caso, não podemos identificar o recurso porque os POs não estão detalhados.
Estas três ações tiveram em 2013 uma dotação de pouco mais de R$ 1,13 bilhão, dos quais foram pagos R$ 800 milhões (80%). Mas a situação precária da saúde indígena mostra que estes valores têm sido insuficientes para garantir atendimento de qualidade, além da existência de problemas da capacidade de gasto e de eficiência na gestão desta política.
Uma cartilha publicada no final de 2013 pelo Cimi* faz uma recuperação histórica da política de saúde e do seu estado atual e mostra que, aliados ao problema da escassez de recursos e da capacidade de execução, existem outros problemas ligados à incapacidade ou ao descompromisso do governo federal de implementar uma política de atenção diferenciada à saúde dos povos indígenas, tal como concebida a partir de décadas de luta dos movimentos indígenas e das organizações parceiras.
Desde a I Conferência Nacional de Proteção à Saúde Indígena, realizada em 1986, foram aprovadas as diretrizes para uma atenção diferenciada à saúde indígena. Na II Conferência Nacional de Saúde dos Povos Indígenas, realizada em 1993, foi aprovado o modelo assistencial baseado nos Distritos Sanitários, modelo este que já havia sido também aprovado um ano antes, em 1992, na IX Conferência Nacional de Saúde.
Mas foi somente em 1999 que, pressionado pela realidade gritante de violação do direito à saúde dos povos indígenas e pela mobilização dos movimentos indígenas e das organizações aliadas, o governo federal editou o Decreto nº 3.156/1999 e promoveu, no Congresso Nacional, a aprovação da “Lei Arouca” (Lei nº 9.836, de 23 de setembro de 1999). Esta Lei determinou que a política de saúde indígena passasse a ser responsabilidade exclusiva do Ministério da Saúde e que fosse instituído o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Sasi-SUS), tendo por base os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs). Foram, então, criados os 34 DSEIs, por intermédio da Portaria nº 852/1999.
Enfim e, ainda, entre a construção das bases desta política e sua execução existe uma grande lacuna. Segundo o Cimi, este “novo modelo ainda não saiu do papel”. Os Distritos Sanitários Especiais Indígenas foram regulamentados muitos anos depois, em 2009, pelo Decreto nº 6.878, de 18 de junho de 2009, o qual estabeleceu que os DSEIs seriam unidades gestoras com autonomia administrativa e financeira.
Para que isto acontecesse, o governo federal/Ministério da Saúde teria que prever recursos orçamentários para cada distrito para garantir as estruturas materiais (prédios, equipamentos, veículos, postos de saúde, hospitais de referência, laboratórios), de recursos humanos, com servidores públicos concursados (médicos, odontólogos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, agentes de saúde, agentes de saneamento, técnicos em administração, pedagogos, entre outros), além do saneamento básico (água potável para o banho, para beber e para as demais necessidades de higiene e limpeza, tratamento de esgoto e coleta de lixo, entre outros) e da estruturação e do funcionamento de conselhos em cada Distrito para o controle social (locais e distritais). Este compromisso ainda está longe de ser cumprido.
De fato, a análise orçamentária das ações de saúde indígena reforça a leitura exposta. O problema da insuficiência da dotação orçamentária é reforçado pela dificuldade de execução e pela forma com que o recurso é gerido, descumprindo as diretrizes e os compromissos assumidos pela política de saúde indígena.
Com base no exposto, podemos olhar mais detidamente a ação 20YP. Esta ação é gerida pela Secretaria Especial de Saúde Indígena/MS, uma parte de forma indireta (mediante convênios), outra parte por meio de execução direta e descentralizada (por meio dos DSEIs). Ela é a principal expressão orçamentária da implementação do modelo de atenção integral centrado na linha do cuidado, com foco na família indígena e com incorporação das práticas e da medicina tradicionais. Basicamente, é ela quem garante a estruturação dos chamados Distritos Especiais de Saúde Indígena com adequadas estruturas físicas, humanas e de funcionamento. O recurso disponível para esta ação, de pouco mais de R$ 1 bilhão, foi dividido entre dois POs, conforme descrição na tabela a seguir.
PO 002 – Promoção, vigilância, proteção e recuperação da saúde indígena
Desenvolvimento de ações de saúde no âmbito dos DSEIs: contração e realização de processos de educação continuada e permanente para os profissionais de saúde e saneamento, gestores e representantes do controle social indígena; deslocamento das equipes multidisciplinares de saúde indígena, equipes técnicas, gestores, pacientes indígenas e controle social (aéreo, terrestre e fluvial), incluindo diárias e passagens; garantia dos contratos de prestação de serviços de limpeza e higienização, segurança, alimentação, entre outras, aquisição de insumos estratégicos, como medicamentos, materiais médico-hospitalares e correlatos, entre outros; produção de materiais pedagógicos e de divulgação; realização de eventos; locação de imóveis; reforma e manutenção dos estabelecimentos de saúde e DSEIs.
PO 003 – Estruturação de Unidades de Saúde para Atendimento à População Indígena
Construção e ampliação dos estabelecimentos de saúde e DSEIs, aquisição de mobiliários em geral, equipamentos médico-hospitalares, odontológicos e de comunicação e informática; aquisição de veículos e embarcações e demais bens necessários ao pleno funcionamento dos estabelecimentos de saúde e sede dos DSEIs.
Para o PO 002, que vamos apelidar aqui de “Manutenção dos DSEIs e de Suas Atividades”, foram destinados R$ 1,06 bilhão, dos quais foram pagos R$ 898 milhões. Para o PO 003, que vamos apelidar aqui de “Estruturação dos DSEIs”, foram destinados apenas R$ 40 milhões, dos quais foram gastos R$ 14 milhões (neste caso, também temos que considerar que foram liquidados R$ 39 milhões).
Olhando mais a fundo a execução desta ação, podemos ver que R$ 453,92 milhões foram gastos de forma indireta mediante convênios com as entidades selecionadas para implementar os DSEIs:
1) a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), com sede em São Paulo (SP), que recebeu R$ 133,68 milhões;
2) o Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), com sede em Recife (PE), que recebeu R$ 27,41 milhões; e
3) a Missão Evangélica Caiuã – Missão Caiuã, com sede em Campo Grande (MS), que recebeu R$ 277,82 milhões.
Além destes repasses de recursos, foi também firmado convênio com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS) no valor de R$ 15 milhões.
Mas que serviços estas entidades foram capazes de “entregar” aos povos indígenas? Esta pergunta deveria ser respondida com base na nova metodologia do governo de gestão por resultados ou “capacidade de entrega”. Contudo, não podemos extrair da execução orçamentária estas respostas, que deveriam ser oferecidas por meio de uma clara prestação de contas destas entidades.
Outra parte dos recursos gastos nesta ação (R$ 348 milhões) está vinculada diretamente à manutenção e à estruturação dos DSEIs. A tabela anexa detalha o quanto foi efetivamente gasto por cada um dos 34 DSEIs existentes. Os dados estão especificados por Planos Orçamentários, o que permite uma clara visualização do quanto foi gasto para a estruturação (PO 003) e a manutenção (PO 002) de cada Distrito Especial de Saúde Indígena.
Não temos aqui a pretensão de analisar a efetividade dos DSEIs a partir unicamente da execução orçamentária, mas esperamos que os dados possam contribuir para que estas análises possam ser feitas no futuro.
Mais informações: os problemas dos DSEIs
“Em 12 de agosto de 2011, foi publicado pela Sesai o edital de chamamento público nº 01/2011, visando à seleção de entidades privadas sem fins lucrativos para execução, por meio de convênios, das ações complementares na atenção à saúde dos povos indígenas. As entidades selecionadas foram a Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), com sede em São Paulo, que ficou responsável por 14 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), o Instituto Materno-Infantil de Pernambuco (Imip), com sede em Recife, responsável por 5 DSEIs, e a Missão Evangélica Caiuá, com sede em Campo Grande, responsável por 15 DSEIs. Esta concentração enorme de recursos e responsabilidades sobre as ações da saúde indígena em apenas três organizações, assim como a falta de transparência na execução deste modelo de relação convenial, tem sido motivo de duras críticas do movimento indígena em todo o país”.
Ainda segundo o Cimi, “os povos indígenas e suas comunidades não podem aceitar que a política continue a ser terceirizada, ou seja, executada através de parcerias e de convênios estabelecidos pela Sesai com entidades, ONGs e prefeituras. Essa política já foi questionada administrativamente e judicialmente, porque ela não respeita a Lei Arouca; não respeita as deliberações das Conferências Nacionais de Saúde Indígena; não respeita as propostas e as necessidades dos povos indígenas; porque se mostrou ineficaz quanto à gestão e execução das ações; quanto à formação dos agentes indígenas de saúde; quanto à prevenção das doenças; quanto ao controle social e à participação indígena no âmbito da política a ser desenvolvida em cada povo ou região”.
Fonte: “A Política de Atenção à Saúde Indígena no Brasil” – Cimi 2013.
Veja os links:
Orçamento Indígena 2013 e Perspectivas para 2014 – INESC
Cartilha sobre Saúde Indígena do CIMI
Fonte: Siop