Meio ambiente para todos?

Crianças da comunidade quilombola Brejo dos Crioulos (MG): herança africana | Foto: João R. Ripper / Arquivo Asacom
Crianças da comunidade quilombola Brejo dos Crioulos (MG): herança africana | Foto: João R. Ripper / Arquivo Asacom

A falta de políticas públicas e a sobrexploração de recursos naturais no Semiárido atinge principalmente a maioria da população, de origem africana e indígena

Ronaldo Eli-ASACom

O Semiárido Brasileiro é visto, desde o século XIX, como uma região problemática, improdutiva, dependente de ajuda e incapaz de resolver seus próprios problemas. É também uma região onde a maioria da população é descendente de africanos e indígenas. Mas o desenvolvimento de políticas públicas, e mesmo a ação política de movimentos sociais no Semiárido, ainda enxerga muito pouco essa diversidade e seus efeitos, enquanto essas populações são as mais violentadas e marginalizadas da história do país.

Segundo a Sinopse do Censo Demográfico do Semiárido Brasileiro, que disponibiliza dados sobre a região baseados no Censo Demográfico realizado em 2010, 59,6% dos habitantes da região do Semiárido se declararam “pardos”, 7,15% se declararam “pretos” e 0,41% disseram ser “índios”. Juntos, somaram 67,16% da população da região. Dos 31,75% que se declararam brancos, 66,78% habitam as cidades. É o maior percentual de habitantes urbanos entre as raças. Essas marcas originárias são invisibilizadas na proposição e desenvolvimento de políticas públicas. Existe, aí, um indício de injustiça racial?

“Chamamos de Racismo Ambiental as injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre grupos étnicos vulnerabilizados e sobre outras comunidades, discriminadas por sua ‘raça’, origem ou cor.” A definição vem do site Combate Racismo Ambiental, criado pela pesquisadora e militante Tania Pacheco, do Rio de Janeiro, descreve esse tipo de injustiça ambiental, que é alvo da atuação de um Grupo de Trabalho da Rede Brasileira de Justiça Ambiental – RBJA.

O público-alvo da atuação do GT pode ser encontrado em todos os estados do país. São comunidades e pessoas, principalmente de origem africana e indígena, que arcam com os custos do projeto de desenvolvimento em curso, que fortalece o capital privado e atende a todas as suas exigências, enquanto fecha os olhos para os impactos dos grandes projetos implementados por corporações nacionais e internacionais. “Esses grupos são os que têm menos acesso às políticas de garantias de direitos, apesar de suas muitas conquistas. São os que decidem menos, tem menos representação nos espaços políticos, tendo menos possibilidades de decidir sobre as políticas, determinar as prioridades. A degradação ambiental é resultado de um modo de apropriação e exploração da natureza baseado no lucro, é uma face das injustiças sociais. E os grupos que não decidem são os que mais sofrem com a degradação e a exclusão”, afirma Cristiane Faustino, membro da RBJA.

Ela explica que “a partir da década de 80 tivemos um processo de expansão capitalista muito acelerado, e na última década, com os governos Dilma e Lula, e também em toda a América Latina, houve um avanço do que a gente chama de economia extrativista, baseada na superexploração dos bens ambientais, atingindo duramente os territórios conservados pelos povos e reivindicados como territórios ancestrais, de vida e trabalho. É a luta dos indígenas pela demarcação, a luta dos quilombolas pela regularização de suas terras, e a luta camponesa pela reforma agrária. E porque esse cenário é racista? Porque as consequências negativas dele recaem diretamente sobre essas populações que foram subordinadas no processo de construção de nossa história. Além disso, esses processos são levados a cabo por grupos que trazem em sua concepção o modelo ocidental e branco. Tem uma forma de ser que é racista, e se aproveita de um contexto racista, que é o contexto de ausência de garantias dessas populações. Não necessariamente a empresa vai para um lugar pela população ser negra, mas se o território tem potencial econômico e a população de lá é negra, é muito mais fácil para a empresa passar por cima de tudo e garantir seu negócio.”

Dispersão étnica – Identificar e evidenciar as características étnicas e raciais dos conflitos da vida no Semiárido não é tarefa simples. O processo de invasão colonial e, posteriormente, de consolidação do Estado Brasileiro na região foi, por um lado, extremamente violento e, por outro, marcado pela desvalorização dos aspectos culturais e naturais da região. O professor José Luciano Aires, da Universidade Federal de Campina Grande, conta que as comunidades quilombolas e indígenas do Semiárido paraibano foram dispersadas por massacres: “Nós tivemos a atuação de sertanistas de São Paulo, como Domingos Jorge Velho. Eles marcharam para a Paraíba depois que destruíram o Quilombo dos Palmares. Por isso nós temos muitos descendentes indígenas, mas não comunidades.”

O professor e pesquisador atua em projetos de convivência com o Semiárido, focando seu trabalho na área da Educação, discutindo como se construiu historicamente a região Nordeste. Ele é o proponente do projeto “O Semiárido paraibano também é afro-brasileiro”, que teve financiamento aprovado pelo Ministério da Cultura para documentar a cultura de matriz africana no território, e destaca: “É importante que ao invés de lutar para combater a seca, a gente trabalhe com a perspectiva de convivência com o Semiárido. Politicamente, nós nos colocamos contra as políticas das frentes de emergência, do carro-pipa, que a gente entende que só vêm beneficiar as elites locais. Foi daí que nasceu esse projeto. A filosofia da convivência com o Semiárido não é apenas a convivência com o clima, mas a convivência com o outro, porque o Semiárido tem populações diferentes, não é homogêneo. Tem diversidades étnicas, raciais, de sexualidade, religiosidades, e nós percebemos que há uma grande rejeição com relação às discussões de matrizes indígenas e africanas. Quando a gente diz que o Semiárido também é afro-brasileiro, nossa proposta é dar visibilidade a essa tradição.”

A dispersão das comunidades em relação à questão racial influencia na configuração dos movimentos sociais e suas pautas. A maior parte dos herdeiros e herdeiras dos patrimônios afro-brasileiros e indígenas se organizam, quando o fazem, em associações de comunidades assentadas a partir de projetos de reforma agrária. “Então, a demanda por políticas públicas vem mais nessa linha, da luta pela terra, dos movimentos sociais do campo. Evidenciam muito mais uma identidade de classe, do que a relação étnica”, diz Aires.

Cristiane Faustino também identifica esse comportamento. Para ela, os movimentos sociais das cidades e do campo no Semiárido ganhariam muito em potencial estratégico ao inserir o componente racial em suas discussões: “A gente vive em uma sociedade, hoje, cheia de conquistas de direitos. A constituição de 88 traz essa marca. Esses direitos precisam ser colocados como estratégia de luta e enfrentamento à expropriação dos territórios. Se existe um Estatuto de Igualdade Racial, e uma Secretaria de igualdade racial, há que se considerar que as políticas de desenvolvimento desfazem o anunciado por essas conquistas. Se por um lado se garante os direitos, por outro, descolado desse direito, vem o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), uma política desenvolvimentista que expropria e está baseada na violência física e psicológica, na ameaça à própria vida de quem questiona esse modelo. Se o Semiárido consegue fazer essa leitura e desvelar o problema racial ali presente, isso fortalece demais o debate, porque vai ser descoberto, afinal, quem é essa classe camponesa que foi destituída de decidir.”

Antônio Crioulo afirma que com o racismo ambiental vem a violência | Foto: arquivo pessoal
Antônio Crioulo afirma que com o racismo ambiental vem a violência | Foto: arquivo pessoal

Opinião Quilombola – Antônio Crioulo, da comunidade quilombola de Conceição das Crioulas, em Salgueiro (PE) e coordenador executivo da Comissão Estadual de Articulação das Comunidades Quilombolas Rurais de Pernambuco, relata que o Estado conta com 124 comunidades quilombolas certificadas, a maioria delas no Semiárido. Destas, somente duas conseguiram avançar no processo de regularização de seus territórios. Ele acredita que a partir dos avanços na questão fundiária as comunidades podem avançar em outras questões.

Crioulo aponta que, além dos problemas fundiários, as comunidades ainda sofrem com a questão dos recursos hídricos: “é muito complexo, porque as comunidades sofrem com o processo de desertificação, e ainda tem que lidar com as consequências de ações equivocadas como a transposição do Rio São Francisco.” A liderança quilombola afirma ainda que como o acesso à água do empreendimento se dará mediante concessão, não acredita que as comunidades serão beneficiadas, ainda que três comunidades remanescentes de quilombos sejam, literalmente, cortadas pelo canal, com impactos negativos.

Para ele, existe racismo ambiental nessa e outras injustiças sociais cometidas contra as comunidades vulneráveis: “Em Rio dos Macacos (Simões Filho-BA) a Marinha faz o que quer na comunidade, inclusive estuprando as mulheres. Só em Pernambuco, mineradoras ganharam o direito de explorar as terras de 5 comunidades. Para fortalecer as comunidades o acesso ao patrimônio é difícil, mas para as grandes empresas, é facilitado. Com tudo isso vem a violência. Em Castainho (Garanhuns-PE), Zé Carlos, que é liderança, não vai à comunidade há três meses, por ameaça dos fazendeiros. Isso acontece também com Goreth, de Chã dos Negros (Agrestina-PE), e outros.”

O quilombola, o pesquisador e a militante ambiental fazem coro ao dizer que o maior enfrentamento das comunidades é contra o latifúndio e o agronegócio e os grandes empreendimentos privados, que monopolizam as políticas e perpetuam as maiores violações de direitos na região. “Nossa grande luta é pela agricultura familiar e pela agroecologia. Nós nos contrapomos ao agronegócio, que além de usar os agrotóxicos, são os que recebem mais recursos do Governo, são os que menos empregam e menos contribuem para a produção do alimento, pois são voltados para o mercado externo, produzindo soja, por exemplo. Essas comunidades, de assentados, quilombolas, ribeirinhos, são afetados diretamente por essas políticas construídas historicamente, do grande latifúndio, das condições degradantes de trabalho, a falta de crédito, sem falar nos aspectos específicos de racismo, preconceito, desqualificação, que fazem parte do cotidiano do semiárido.”

 

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