Era tarde da noite. O garoto não viu qualquer alma. Não faria mal, então, pegar a bolsa da mulher caída no beco. Era pobre, se notava, mas algo levaria na bolsa que jazia a seu lado. Ela mesma nem se movia. Estava estendida de lado, a boca babando, os olhos fixos. Morta? Ele puxou a bolsa, mas ficou comovido com a expressão, quase que de espanto, da mulher. Não era velha, mas estava maltratada. As marcas não desfiguravam uma possível beleza. Haveria de ter sido bem bonita. Como movido por um chamado, ele se deixou ficar, absorvido pela figura. Ela se mexeu, e deu um gemido quase intangível. Mas o guri continuou ali, esperando sabe-se lá o quê. E mexeu na sacola, para ver se achava algo que dissesse dela.
Um nota de dois reais, um crucifixo de prata, pedaços de papel higiênico, um pedaço de sabão azul e uma carteirinha de identidade profissional. Ele aproximou o papel da luz e leu: Angela Maria de Abreu e Silva. Professora. Seria ela? A foto era antiga, e a mulher na foto sorria. Tinha um cabelo liso, claro. E havia nela uma expressão diáfana, talvez porque a foto estivesse esbranquiçada. Olhou de novo para a mulher, comparando. Poderia ser. A carteira era velha. E a mulher também. Mas porque raios uma professora estaria deitada num beco, tarde da noite, como uma mendiga?
Lembrou da sua professora que estava em greve. Mais uma daquelas que tanto transtorno traziam para a escola. Não era diáfana, como a da foto. Tinha os cabelos crespos, óculos de aros pretos e a expressão de rebeldia. Não curtia os seus discursos inflamados contra o governo. Se não gostava, porque não dava o fora? O governo fazia o que podia. Aquele pessoal parecia nunca estar satisfeito. Ele não estava nem aí se não tinha livro, ou se a escola caia aos pedaços. Aquilo não iria mudar a vida dele. Seguiria sendo o que era: um guri largado pelo pai e quase sem mãe, sempre fora, “ganhando uns trocados” como dizia.
A mulher se mexeu e virou o rosto na direção da luz. Sim, era ela. A moça da foto. A professora. Sem saber por quê, fixou os olhos nas mãos dela. Magras, ossudas, de unhas curtas e sujas. O que a teria trazido até o beco? Quantas greves teria feito? Seria uma das resmungonas, como a professora de História? Ou estaria mais para a de Matemática, que olhava os movimentos de luta dos colegas e não se envolvia? Não poderia saber. Ainda assim, teve pena. Fosse ela do jeito que fosse. Não devia ser fácil enfrentar todos os dias uma gurizada como ele, cheia de medos, dores e ódios. Cheirou a boca da mulher. Não estava bêbada. Talvez fosse doença.
Ele encostou no muro, ao lado da mulher, e ficou matutando. O que fazer? Chamar um guarda? Haveria de prendê-lo! Quem nasce com aquela cara e com aquelas roupas de suspeito não tinha muita chance de fazer o bem. Meteu as mãos nos bolsos buscando o que fosse. Queria deixar algo seu junto aquela pobre alma, que fora professora um dia. Talvez tivesse virado mendiga porque o salário nunca fora o suficiente. Sabe-se lá. Achou notas do mercadinho, um botão velho e o chaveiro com a cara do Darth Vader. Ela não precisaria de nada daquilo. Procurou na meia e catou 10 reais. O rosto da mulher brilhava com a luz da lua. Ele dobrou o dinheiro e colocou na bolsa surrada, a qual colocou por debaixo do corpo caído. Vai que aparece algum vagabundo.
No dia seguinte, na escola, foi ver a greve. E, sem que soubesse por que, gostou de ver a professora de História a fazer seus discursos. Ela era valente, não acabaria num beco. Sorriu e foi ajudá-la a colar um cartaz.