Indígenas do Semiárido resistem à perda de territórios e afirmam sua identidade
Ronaldo Eli – Asacom
O Semiárido brasileiro abriga em seu território dezenas de etnias indígenas, com mais de 70 mil pessoas. Os movimentos migratórios que resultaram nessa ocupação tiveram diversas fases, com uma diferenciação importante entre os ocupantes mais antigos, que chegaram à região há milhares de anos, e os mais recentes, cuja migração foi forçada a partir do século XVI. Atividades econômicas como a exploração do pau-brasil na região norte e a monocultura da cana-de-açúcar no litoral foram responsáveis pelo deslocamento e pela aniquilação de muitas comunidades.
Habitando toda a região e, especialmente, as margens do Rio São Francisco, as comunidades indígenas estabeleceram a resistência ao desenvolvimento econômico predatório. Para Juciene Ricarti, professora e pesquisadora do tema, “existe uma diversidade étnica no Semiárido brasileiro onde se situam esses povos, como os Pankararu, os Truká, os Kiriri, os Xucuru, por exemplo. São povos que, de formas diversas, com suas trajetórias históricas e sua tradição oral, vêm mostrando que vieram para estar, permanecer e se construir dentro do território nacional na busca pela respeitabilidade à sua diversidade étnica e cultural e a seus processos de territorialização”.
Território e espiritualidade – A luta em defesa de seus territórios tradicionais é o centro do mais antigo e acirrado conflito que envolve essas comunidades. De um lado, os povos originários reivindicam o direito à terra não só como local de sustentabilidade, mas também de existência do sagrado, da história e do desenvolvimento espiritual. De outro, posseiros afirmam ter direitos de propriedade sobre essas terras, e defendem o avanço do desenvolvimento econômico. Para estes últimos e para a sociedade não-indígena, trata-se de um conflito agrário. Para o Cacique Santo, da etnia Xakriabá, “se você não defende a terra você não tem nada da vida, não tem saúde ou alimento que vem das plantas, águas e animais, e perde a ligação com os antepassados e a natureza. A terra oferece tudo para nós índios, é a nossa casa e nossa força espiritual.”
Os Xakriabá, etnia indígena com maior número de membros no Estado de Minas Gerais, têm presença registrada no sertão mineiro desde o século XVI, quando foram vítimas de numerosos massacres. Hoje concentrados no município de São João das Missões, 10 mil pessoas se distribuem em 34 aldeias. Seu território foi demarcado em 1979 com cerca de 46 mil hectares, um terço da reserva a que eles têm direito, e deixando de fora várias comunidades.
Morro Vermelho é uma delas. A comunidade reivindica integração à área demarcada. Fez uma pesquisa histórica e juntou as provas necessárias, que foram apresentadas à Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2002. Como não houve nenhuma evolução, em 2006, eles executaram uma retomada, processo pelo qual as comunidades indígenas assumem a posse de seus territórios e expulsam os invasores. Em 2013, uma nova retomada foi realizada, e o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a permanência de cerca de 500 Xakriabá no território em disputa até que a causa seja julgada. A página “Eu também sou Xakriabá”, no Facebook, veicula informações desta luta.
A retomada é uma das principais estratégias utilizadas nestes conflitos, mas não é a única. Os Pankararu, que habitam o sertão pernambucano, optaram pela negociação como ferramenta de reconquista de seu território. Segundo Fernando Oliveira, 38, que pertence a essa etnia, “a justiça já tomou uma decisão em última instância. Agora estamos aguardando que os posseiros recebam as indenizações, para que saiam de uma forma legal, sem ser chutados. É um processo lento, demorado. Optamos por essa forma para evitar um conflito extremo.” Seis mil Pankararu se dividem em 13 aldeias, entre os municípios de Tacaratu, Petrolândia e Jatobá.
Reabilitação da terra e acesso à água – Quando conseguem reestabelecer o direito à vida em seus territórios, é preciso reabilitar a terra para construir a dignidade coletiva. A natureza, agredida pela monocultura, insumos químicos, desmatamento, queimadas e outros abusos, precisa ser cuidada. A recuperação de nascentes e vegetações destruídas é um processo difícil e demorado. Oliveira acredita que o reflorestamento é o próximo grande passo a ser dado pelos Pankararu.
Na aldeia de Brejo dos Padres, onde ele reside, o acesso à água é difícil, especialmente em períodos de seca prolongada, como o que está sendo vivenciado agora. Localizada a 10 quilômetros do Rio São Francisco, a aldeia não conta com fornecimento regular. “Tem uma água que chega em pouca quantidade, e às vezes nem chega, que foi um projeto da antiga Funasa [Fundação Nacional de Saúde]”, relata o indígena. Ainda segundo ele, algumas pessoas na aldeia estão recebendo cisternas de plástico, e em outras aldeias vêm sendo implementadas as cisternas de placas do P1MC. E para ajudar a atender às demandas de produção de alimentos, estão sendo construídas cisternas-calçadão no território Pankararu.
Os Xakriabá também utilizam a tecnologia das cisternas de placas como alternativa, em uma experiência avaliada como positiva por Hilário Corrêa Franco, membro da etnia e liderança indígena: “Antes da cisterna, a gente bebia as águas dos córregos, que vêm da chuva, mas que sofrem muita contaminação. Nossa região é muito calcária, então muitas pessoas têm problemas de rins. Hoje, com o programa [P1MC] na comunidade, a gente sente uma diferença muito grande. Pouquíssima gente está se queixando de problema de rins, e a água é espetacular.”
“O direito à água precisa chegar também nas comunidades indígenas do Semiárido brasileiro, que são comunidades que lutam por terra, pelos seus territórios, pela água e pelas suas tradições há muitos anos. O trabalho que a gente tem feito com as tecnologias da ASA tem fortalecido essa luta”, avalia Valquíria Lima, coordenadora executiva da ASA no Estado de Minas Gerais. Ela destaca a troca de conhecimentos que acontece durante esse trabalho: “A gente tem aprendido muito com os costumes indígenas, com a forma deles de tratar a terra e a água. A gente precisa respeitar culturalmente toda a tradição que existe em cada aldeia.” A ASA já realizou 1.312 implementações em comunidades indígenas do Semiárido, sendo 1.006 do P1MC e 306 do P1+2.
Território simbólico – A questão do território indígena se arrasta ao longo de séculos e se expressa agora em outros campos. Se na sociedade em geral, o consumo de informação ocupa lugar central, conquistar o acesso a conteúdos e tecnologias para produção de narrativas representa o direito de construir e contar a própria história.
A ONG Thydewá, gerida coletivamente por índios e não índios, é responsável pela série de livros “Índios na visão dos índios”, além de produções em áudio e audiovisuais. Nos livros da série cada um conta um pouco de sua vida, seus hábitos, suas culturas, buscando superar a idealização e simplificação da visão sobre as etnias e a civilização indígena. “Nossa instituição aprende com as comunidades indígenas a fazer as coisas pelo e para o coletivo, orientados pelo bem comum e pensando em forma holística incluindo as futuras gerações”, descreve Sebastian Gerlic, presidente da Thydewá.
Outra ação desencadeada pela organização é a Rede pelas Mulheres Indígenas, que provê um espaço virtual e estrutura de conectividade e produção para mulheres indígenas de oito etnias nordestinas. “A rede ajuda a divulgar mais a luta das mulheres indígenas, as dificuldades, a realidade que cada mulher indígena passa. A realidade é diferente do que as pessoas falam. Falam que a mulher indígena é preguiçosa, mas nós somos iguais a qualquer outra mulher, e somos guerreiras”, disse Gessy Tupinambá, que atua no projeto.
Na aldeia Mirandela, no território Kiriri próximo a Banzaê (BA), a Rádio Kiriri FM transmite em ondas a cultura da comunidade. A rádio foi criada a partir de uma série de oficinas realizadas pela Rede Espalha a Semente, que estimula a produção de comunicação em aldeias utilizando diversas linguagens.
Ricardo Jesus dos Santos, estudante, 22 anos, é locutor, editor e cuida da manutenção dos computadores na rádio. Seu relato mostra que com a superação da questão da terra, a convivência e o respeito entre povos diferentes é possível. “Eles acham que nós temos uma cultura forte, porque Kiriri é um povo que não desiste. O povo Kiriri é conhecido como um povo quieto, que não fala muito. Mostra e não fala. A maioria tem uma avaliação positiva. A rádio contribui com isso, porque está desenvolvendo cada vez mais a cultura indígena Kiriri não só pra dentro, mas pra fora também, para os não-índios.”