“O senhor pode chamar a Polícia Federal aqui? Estão atirando em nós.” Quase um ano e meio depois da histeria em torno da carta que anunciou a morte coletiva, a vida pouco mudou para as famílias indígenas do Pyelito Kue
Bruno Morais, Le Monde Diplomatique Brasil
Era a tarde do domingo de carnaval e do outro lado da linha estava Lide Solano Lopes, cacique do acampamento Pyelito Kue. No dia 12 de fevereiro, cerca de 250 indígenas Kaiowá e Guarani haviam retomado a Fazenda Cambará, propriedade de Osmar Bonamigo, e levantaram barracos ao redor da casa que servia sede. Ao fundo da ligação, se escutava o tiroteio.
Entre a cerca e a estrada
Para se chegar ao Pyelito Kue vindo do município de Amambai é preciso entrar a esquerda em um acesso de terra na rodovia MS-386, logo antes da cidade de Iguatemi. Vinte quilômetros adiante se avista um amontoado de barracos de lona e estacas de madeira, espremidos entre uma cerca e uma estrada vicinal – ao final do ano de 2012, Polícia Federal e Funai acompanharam os funcionários da fazenda que assentaram os postes e passaram os arames, cumprindo a ordem judicial que reservava um hectare de terra para permanência dos indígenas enquanto se concluía o processo de demarcação. Até a retomada da Fazenda Cambará, era esta a sina das famílias do Pyelito: sempre entre a cerca e a estrada.
No criolo entre português, castelhano e guarani falada na região, Pyelito Kue significa algo como “lugar onde ficava o pequeno povoado” e faz referência a uma área reivindicada como de ocupação tradicional Guarani-Kaiowá às margens do rio Hovy, no município de Iguatemi (MS), quase fronteira com o Paraguai. Expulsos pelos colonos entre as décadas de 1940 e 60, os indígenas desse “pequeno povoado” foram levadas forçosamente para as reservas indígenas de Sassoró, Limão Verde, Amambai e Taquapiry, criadas pelo Serviço de Proteção ao Índio para receber os que iam sendo despejados no processo de “liberação de terras” para a ocupação da região.
Sem área para plantar, espremidos entre 3 mil pessoas em menos de 2 mil hectares em Sassoró, e compondo as maiores estatísticas de homicídio e suicídio por habitante do país, as famílias do Pyelito decidiram encarar o êxodo em busca da demarcação de suas terras. De 2003 a 2009, as retomadas da área – hoje sobreposta por 46 fazendas, quase todas dedicadas à criação de gado – tiveram um desfecho trágico. Uma e outra vez os guarani foram expulsos por ataques de pistoleiros, a mando dos fazendeiros da região.
Escutar o testemunho desses ataques é um pouco reviver as investidas das tropas brasileiras sobre os povoados paraguaios daquela mesma fronteira, na guerra do século XIX. Homens bêbados invadindo o acampamento de madrugada sob uma saraivada de tiros, derrubando os barracos, violentando as mulheres, sequestrando crianças, incendiando roupas, cobertas, tudo. Sobrevive quem foge para o mato. Só dali uma semana é possível voltar à área e contabilizar os prejuízos – entre mortos e desaparecidos, nunca se tem certeza de quanta gente foi assassinada assim.
Adelio Rodrigues, um senhor de 48 anos que liderava um grupo de famílias que reivindicam uma área contígua ao Pyelito Kue chamada Mbarakay, foi espancado em um desses ataques em julho de 2011. Àquele tempo, a comunidade havia deixado as fazendas para acampar às margens da rodovia estadual justamente na esperança de que a facilidade de acesso da Funai e da Polícia Federal os poupasse de novos episódios de violência. Após esse atentado é que Adelio Rodrigues e Lide Solano Lopes resolveram reocupar novamente o território do Pyelito Kue e Mbarakay, por uma última e definitiva vez.
Logo depois da nova ocupação, Adelio faleceu em decorrência das sequelas do ataque.
Eu também sou Guarani-Kaiowá
Em nove de agosto de 2011, os indígenas do Pyelito Kue e Mbarakay levantam acampamento em uma área de reserva legal entre as Fazendas Cambará e Santa Rita. Mesmo a atenção do Ministério Público Federal (MPF) e da Funai não poupou três investidas de pistoleiros por sobre o acampamento. Os indígenas se mudaram de local, a comunidade ficou escondida e isolada no meio do mato. Com o cerco na estrada vicinal, o único acesso ao acampamento era cruzando o rio a nado a partir da Aldeia de Sassoró, e dali cortar a pé e no escuro as fazendas até o local dos barracos.
Em novembro, os fazendeiros chegaram a bloquear o acesso de uma comitiva com representantes da Secretaria Geral da Presidência da República e Secretaria Especial de Direitos Humanos. Sem nenhuma timidez frente aos soldados da Força Nacional, e munidos eles mesmos de câmeras, diziam em alto e bom som: “Vamos queimar esses ônibus com índios! Índios vagabundos! Ficam invadindo fazendas!” – um dos homens era o Presidente do Sindicato Rural de Iguatemi, Marcio Morgatto. A pedido dele, o então prefeito da cidade, José Roberto Arcoverde (PSDB), apareceu no local. Sua família é proprietária da Fazenda Santa Rita.
Os desdobramentos jurídicos do episódio? Para além da denúncia feita pelo Conselho Indigenista Missionário, nada. Nenhuma investigação policial apurou o crime de ameaça. Nenhuma medida foi tomada por parte do Governo Federal para a segurança dos indígenas na região. Nenhuma medida para garantir a permanência da comunidade no território reivindicado. Dali a um ano, em novembro de 2012, a Justiça Federal de Naviraí expediria liminar ordenando a saída imediata dos indígenas das terras da fazenda Cambará.
A ordem foi respondida com uma carta da comunidade em que se anunciava, em desespero, a decisão de resistir. Pinçando inteligentemente uma frase que captava o drama da situação, a jornalista Eliane Brum publicou na Revista Época uma coluna intitulada “’Decretem nossa extinção e nos enterrem aqui”1, em que se conjugavam estatísticas de suicídio com a expressão ‘morte coletiva’.
‘Morte coletiva’ foi repetida cinco vezes no artigo, e infinitamente nas redes sociais. O resultado foi uma certa histeria.
Rapidamente ‘morte coletiva’ virou ‘suicídio coletivo’. Em homenagem aos Guarani-Kaiowá, pessoas trocaram seu sobrenome no facebook e compartilharam fotos de indígenas enforcados – estranha maneira de demonstrar solidariedade. Mais de 50 manifestações foram organizadas em diversas cidades do Brasil e do mundo, e surgiram “comitês” e “brigadas” de apoio à resistência indígena. “Eu também sou Guarani-Kaiowá”, dizia a consígnia de inspiração neo-zapatista, que chegou ao gosto de militantes socioambientalistas e de partidos de esquerda das capitais. Em São Paulo, uma marcha na av. Paulista reuniu cerca de mil pessoas.
“Suicídio coletivo? Não!”, Lide Solano Lopes aparece em um vídeo desmentindo os boatos em torno de sua comunidade, “Não nos entregaremos assim tão fácil!”. Os Guarani e Kaiowá de Pyelito vieram a público explicar o mal entendido em cima das suas declarações, mas a esse ponto a própria Ministra Maria do Rosário já havia se manifestado pela necessidade de intervenção na reintegração do Pyelito Kue. A reintegração foi suspensa pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que autorizou aos indígenas a permanência em um hectare da Fazenda Cambará até a conclusão dos processos demarcatórios. O “devir Guarani-Kaiowá” parece ter tido um efeito positivo: parafraseando o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, éramos todos índios, exceto quem não era.
Mas em um país onde todo mundo é índio de direito, ninguém pode ser índio de fato.
Um hectare para o Pyelito
Lide me mostrou o estado dos barracos, as lonas estavam furadas e rasgadas. Janeiro é período de chuva no Mato Grosso do Sul, e eu só pude imaginar como seria dormir debaixo daquele teto em uma noite de tempestade de verão. Quase um ano e meio depois da histeria em torno da carta da comunidade, a vida não havia mudado muito para as 20 famílias indígenas do Pyelito Kue. Sob as árvores de uma capoeira baixa, o Pyelito seguia a sina entre a estrada vicinal e a cerca assentada pelo proprietário da Fazenda Cambará, sob os auspícios da justiça. A maior reclamação era a falta de escola para as crianças, o que é só uma derivada da reclamação por falta de terra: como ter uma escola onde não há espaço pra se levantar nem mais um barraco?
Pelo atraso nas demarcações, que deveriam ter sido concluídas até 1993, o Ministério Público Federal firmou em 2007 um Compromisso de Ajustamento de Conduta com a Funai concedendo prazo até janeiro de 2011 para a conclusão dos estudos de identificação e delimitação das terras indígenas guarani no Estado.
Ambos, Pyelito Kue e Mbarakay, fariam parte do Grupo de Trabalho (GT) do Iguatemipegua I, sob responsabilidade da antropóloga Alexandra Barbosa da Silva. O GT foi instaurado em 2008, mas os trabalhos só foram encaminhados em 2010. Dentre todos os relatórios técnicos de identificação de terras indígenas no Mato Grosso do Sul, apenas o de Pyelito Kue e Mbarakay foram publicados até agora. O prazo para contestação já se esgotou, e o encaminhamento da demarcação depende unicamente da assinatura do Ministro da Justiça e da homologação pela Presidência da República.
Na portaria publicada em janeiro de 2013, a área identificada como Pyelito Kue e Mbarakay soma 41.571 hectares – desses, um único hectare estava efetivamente ocupado pelos índios à época da publicação, conforme autorizava a Justiça e garantia a cerca fincada pelo fazendeiro. Um hectare corresponde a 10 mil metros quadrados, o que é mais ou menos a área de um campo de futebol.
Em novembro do ano passado, uma nova carta já predizia um novo conflito: “Nós queremos que eles [governo brasileiro] cumpram a sua palavra. Eles falam que vão fazer. Nós já ficamos esperando”, dizia a carta, “E eles não estão cumprindo, não estão chegando e não vem para demarcar a nossa terra”. Quando visitei o Pyelito em janeiro de 2014, as crianças brincavam sob os galhos dos arbustos em que estava metida a comunidade. Uma pequena estrutura de ogapysy – a casa de reza tradicional em que os guarani realizam seus ritos – estava sendo construída em uma área aberta, mas faltavam o sapé e a madeira necessária para finalizá-la. As mulheres reclamavam que não era possível plantar naquela terra, que não havia água suficiente. O funcionário da Coordenação Técnica Local da Funai confessou que lhe faltavam recursos para garantir a segurança dos índios, e os jornais locais circulavam a informação de que empresas de segurança privada haviam sido contratadas pelas fazendas da região.
Lide me chamou de lado, pediu que eu visitasse uma família cuja criança estava doente. O menino tinha cerca de dois anos e estava prostrado, com a barriga inchada. A cena me impressionou bastante. Dali a dois dias, recebi a notícia de que a criança havia morrido.
Um hectare é mais ou menos um campo de futebol
Na segunda semana de fevereiro de 2014, a comunidade retomou a totalidade da fazenda Cambará. Os cerca de mil hectares da propriedade estão todos sobrepostos à área identificada pela Funai como de ocupação tradicional indígena. O funcionário que residia na sede não foi agredido, nos dias que se seguiram os próprios índios auxiliaram a retirada de todo o gado criado na fazenda. Apesar do clima de tensão e de episódios de ameaça, a situação estava relativamente sob controle: Osmar Bonamigo, o proprietário, chegou a declarar aos índios e à Funai que abandonaria a área.
As fazendas vizinhas, no entanto, reforçaram a segurança. A imprensa local noticiou que o Sindicato Rural de Iguatemi estava investindo 15 mil reais ao mês em segurança privada na região a fim de evitar “novas invasões”. Os indígenas, de sua parte, declararam que aguardariam nos um mil hectares da fazenda Cambará novo posicionamento do Governo e da Justiça, mas dão notícia que homens armados e de moto circundam a área da retomada duas vezes ao dia.
Por volta das 15h do dia dois de março, três desses homens e uma mulher posicionados na estrada em frente à porteira da fazenda abriram fogo contra os indígenas. As crianças, que brincavam no pátio da casa que servia de sede à fazenda, se esconderam atrás das árvores e de uma mureta de concreto. Um tiro acertou a porta, poucos centímetros de onde estava sentada uma senhora de idade. Uma bala ricocheteou no assoalho de madeira da casa e feriu uma árvore. Quem estava dentro dos barracos protegeu-se no chão. Alguns homens, armados com arco-e-flecha e facões, se aproximaram agachados da cerca, e as pessoas que estavam fazendo os disparos fugiram.
“Nossa comunidade é pouca gente, mas é corajosa!”, me disse Marcio Solano Lopes, filho do cacique Lide, “Se acertarem nossa família, a gente vai ter com eles na fazenda”. Ao todo, o tiroteio deixou nove marcas de bala nas paredes, árvores e barracos da comunidade. Lide fez questão que eu fotografasse uma a uma – “Como a gente vai reagir, sem arma?”, perguntou.
Essa é uma pergunta sem resposta. Como o Pyelito reagiu até hoje, sem arma?
No domingo de carnaval, quando escutei o tiroteio pelo telefone, notifiquei pessoalmente a Polícia Federal. Sem resposta. Tentei notificar o Ministério Público Federal, mas os Procuradores não estavam na cidade. Tentei notificar a Funai, mas o que eles poderiam fazer? Notificar, novamente, a Polícia Federal?
A Funai na região não está em uma situação melhor do que as dos índios. A sede da Coordenação Técnica Local de Iguatemi foi invadida poucos dias antes do tiroteio. Destruíram computadores, roubaram documentos, e tentaram levar a caminhonete da entidade – o que só não foi possível porque um caminhão parado na porta impediu a passagem do veículo. O coordenador local solicitou ao MPF sua inserção no Programa de Proteção da Secretaria de Direitos Humanos Presidência da República (SDH), em que já estão inscritas mais de 20 lideranças indígenas no Mato Grosso do Sul.
Apesar disso, não creio que tenha sido designada alguma escolta. No domingo de carnaval, quando escutei o tiroteio pelo telefone, chamei o plantão da SDH e pedi que eles acionassem o efetivo da Força Nacional. Fui informado, prestativamente, de que “infelizmente a SDH não tem comando da Força, que obedece diretamente o Ministério da Justiça”. No mais, a portaria que autoriza o efetivo a atuar nos conflitos fundiários envolvendo indígenas no
Estado está vencida desde o ano passado, e o Ministro José Eduardo Cardozo ainda não promoveu sua renovação.
Caminhando pelos limites da retomada, a pergunta de Lide me ecoava: como o Pyelito reagiu até hoje, sem arma?
A poucos centímetros do chão, em meio ao capim do pasto, notei que brotavam ramas de mandioca recém-plantadas. Imaginei o quão difícil deve ser roçar uma terra assim, coberta há tantos anos com pasto. Mais adiante, dez garotos jogavam bola em um campo improvisado.
Não havia espaço pra futebol, quando eles ocupavam um só hectare.
*Bruno Morais, Advogado indigenista.
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1 “Decretem nossa extinção e nos enterrem aqui”, coluna de Eliane Brum. Revista Época, 22 de outubro de 2012, disponível AQUI.