O poder nu e a dor banal

Foto: Lucas Moreira Victor
Foto: Lucas Moreira Victor

Por Sandra Helena*

Durante o ciclo tucano no governo federal era costume ver adesivos de carros onde se lia ‘não reclame comigo, votei no PT’. Àquela altura os setores ditos progressistas da sociedade brasileira somavam forças em torno da estrela vermelha, sobretudo no segundo mandato de FHC. Eu reagia com vigor a essa inscrição por não considerá-la suficientemente democrática e colocar sobre o maior partido de oposição expectativas que sabíamos irrealizáveis a curto e médio prazo. E por ter acompanhado um episódio que me deixara indignada, antecipador do que estava por vir.

Governador do DF entre 1995/99, o então petista Cristóvam Buarque ordenou desocupações de terrenos ‘‘grilados’’ no plano piloto, segundo se dizia à época. A polícia militar do DF agiu com a costumeira fidalguia que todos conhecemos nesses casos. Como o governador era de oposição a mídia o acossava sem dó colocando-se sem disfarces como porta-voz dos ‘‘invasores’’. Numa das entrevistas, talvez levado pelo calor da emoção, Buarque afirmou, sem papas na língua: ‘‘com gente desse tipo, vamos preparados para qualquer coisa’’, em um dia de confronto demorado e com vítimas. As discussões nas salas de aula ferviam e eu, eleitora àquela altura da oposição (Brizola/Lula), repudiei a declaração e a prática do governador: essa não poderia ser a nova forma de fazer política mesmo que os adversários o fizessem por merecer. Sim, podem gargalhar. Naquela ocasião eu também fui motivo de chacota.

Um vídeo incontornável do Coletivo Nigéria com depoimentos de moradores despejados da Comunidade Alto da Paz me revolveu essas velhas feridas. Nele ouvimos algumas vozes embargadas, magoadas, profundamente humilhadas, dirigindo-se não a Eliana Gomes da Habitafor, como se poderia esperar, mas ao próprio prefeito, em quem votaram e confiaram por apresentar-se como ‘‘médico de família, que ia cuidar das famílias’’.

Difícil se manter impassível. Homens adultos se afirmando deprimidos e pedindo psicólogos para o local; avalie-se a devastação nas almas das crianças, acordadas com a truculência de cavalos, cães, bombas, balas e brucutus. O depoimento da senhora que se vê entre a patroa intransigente com suas faltas e a luta da comunidade é um documento de antropologia política e cultural por si só. E o velho que chama o prefeito às falas: ‘‘você não fez trabalho de homem, você não fez trabalho de cidadão, pode vir me procurar que eu não tenho mais nada a perder’’, com uma elegância digna que só a coragem e a dor podem conferir.

O injustificável torna-se modus operandi do governo municipal, repeteco da brutalidade da desocupação do Cocó. E de mais nada adianta dizer em quem se votou. O monopólio da violência de Estado veste, sem escrúpulos, todas as cores, símbolos e bandeiras, autônomo, como uma medusa.

Se meu coração ainda é vermelho? Sim, de sangue e raiva. E vontade.

*Sandra Helena é professora de Filosofia e Ética da Unifor.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Rodrigo de Medeiros Silva.

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