“Não existe um sentido preciso e unívoco da palavra terrorismo, como mal absoluto a ser combatido”. Entrevista especial com Deisy Ventura

Foto: brasilsoberanoelivre
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“Sob a perspectiva do interesse público, o importante agora seria fazer com que o Direito Penal fosse cumprido com maior equidade, celeridade e eficiência”, adverte a advogada

IHU On-Line O polêmico Projeto de Lei 499/13, encaminhado para votação em caráter de urgência no Senado Federal, é apenas um dos seis projetos em tramitação com o objetivo de tipificar crimes de terrorismo no Brasil, informa Deisy Ventura, em entrevista à IHU On-Line.

Segundo ela, “o curioso é que a polêmica em torno das leis sobre terrorismo não ocorreu no momento da apresentação destes projetos, e sim quando alguns Senadores, comoJorge Viana e Paulo Paim, passaram a defender a tramitação do PLS 499/13 em caráter de urgência, em resposta à grande repercussão da morte de um cinegrafista, atingido por um artefato explosivo durante uma manifestação contra o aumento das tarifas de transporte coletivo, ocorrida em 06 de fevereiro último, no Rio de Janeiro”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, a professora de Direito da USP apresenta e comenta as principais propostas de lei e enfatiza que “em lugar de preencher um vazio” na legislação, tais projetos podem abrir “um rombo, mais um bolsão de estado de exceção em nosso ordenamento”. Deisy relata que, ao ler a justificativa oficial do PLS 499/13, constatou que ela “demonstra, antes de qualquer coisa, uma imensa ignorância sobre a história desta nefasta palavra. As leis antiterroristas têm sido o recurso empregado por quem controla o Estado, em geral durante lutas independentistas, separatistas ou de resistência aos regimes totalitários, para descartar definitivamente os seus opositores do campo da lei comum e da negociação. O terrorista, mais do que fora da lei, passa a ser aquele que se encontra fora do humano, por sua infâmia absoluta”. E dispara: “O que chama mais a atenção no PLS 499/13é o crime de incitação ao terrorismo, previsto em seu artigo 5º. Nada mais é dito sobre este crime, além de ‘incitar o terrorismo: Pena – reclusão de 3 a 8 anos’”.

Na avaliação da advogada, os projetos de lei em tramitação “parecem retomar a ideia de que é melhor combater do que definir o terrorismo. A avassaladora má fama do termo obnubila o fato de que, quanto menor a precisão do tipo penal, maior a margem de discricionariedade do Estado para impor processos e sanções excepcionais”.

Deisy Ventura é mestre em Direito Comunitário e Europeu e doutora em Direito Internacional pela Universidade de Paris 1. Foi professora do Programa de Pós-Graduação em Direito na Unisinos e professora adjunta e Pró-Reitora de Assuntos Estudantis da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Atualmente é professora de Direito Internacional e Livre-Docente do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que consiste a proposta do Projeto de Lei 499/13 de criar uma lei antiterrorismo? Que atos devem ser considerados terrorismo segundo a proposta?

Deisy Ventura – É importante esclarecer que há ao menos seis projetos em tramitação no Senado Federal com o objetivo de tipificar (grosso modo, descrever uma conduta e atribuir-lhe uma pena) o crime de terrorismo e correlatos.

Embora nunca definido pelo Direito brasileiro, o terrorismo aparece em dois dispositivos basilares da Constituição Federal de 1988: o artigo 4ºVII eleva o repúdio ao terrorismo e ao racismo à condição de princípio norteador das relações internacionais do Brasil; e o artigo XLIII faz dele um crime inafiançável e insuscetível de graça e anistia, ao lado da prática da tortura, do tráfico ilícito de entorpecentes e dos crimes hediondos. Assim, tipificar este crime supostamente supriria uma lacuna da ordem jurídica brasileira. Considerando o nível do debate, porém, em lugar de preencher um vazio, temo que abra um rombo, mais um bolsão de estado de exceção em nosso ordenamento.

A inconsistência dos novos tipos penais é flagrante: o PLS 499, apresentado em 28-11-2013 pelos Senadores Romero Jucá e Cândido Vaccarezza, define o terrorismo como “Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa”, punível com a reclusão de 15 a 30 anos ou, se resulta em morte, de 24 a 30 anos [1]. Contudo, o projeto não define o que é terror ou pânico generalizado, nem esclarece se eles são a finalidade ou o efeito da conduta; tampouco precisa o seu alcance ou a sua intensidade. Por outro lado, seria amplo o leque de condutas que poderiam ser consideradas, por exemplo, uma “tentativa de ofensa” à saúde das pessoas. Ademais, este projeto já conta com numerosas emendas (propostas de alteração de trechos específicos do texto) apresentadas em plenário, todas piores que o soneto.

A lei conforme o gosto do freguês

Um projeto anterior, o PLS 762/2011, do Senador Aloysio Nunes Ferreira, adota a mesma definição, com um importante acréscimo, a finalidade do crime: “por motivo ideológico, religioso, político ou de preconceito racial, étnico, homofóbico ou xenófobo”. A expressão motivo ideológico causa arrepios. A mesma redação encontra-se no PLS 728/2011, de 09-12-2011, que foi apresentado pelos Senadores Marcelo CrivellaAna Amélia Lemos e Walter Pinheiro com o objetivo de “incrementar a segurança da Copa das Confederações FIFA de 2013 e da Copa do Mundo de Futebol de 2014, além de prever o incidente de celeridade processual e medidas cautelares específicas, bem como disciplinar o direito de greve no período que antecede e durante a realização dos eventos”. Explicitamente casuísta, este PLS, diferentemente dos demais, prevê o aumento de um terço das penas se o crime for praticado “contra integrante de delegação, árbitro, voluntário ou autoridade pública ou esportiva, nacional ou estrangeira” (art. 4, I) ou “em estádio de futebol no dia da realização de partidas da Copa das Confederações 2013 e da Copa do Mundo de Futebol” (III). É a lei conforme “o gosto do freguês”.

Mas há definições ainda piores: o PLS 588/2011, da lavra do hoje cassado Demóstenes Torres, cuja justificativa pena para alcançar meia página, inclui na definição do terrorismo a “ação psicossocial” capaz de causar “medo, desespero, intimidação da população”, com o intuito de “abalar a paz social”. Difícil imaginar de que paz social tratava o ex-Senador. No PLS 707/2011, o Senador Blairo Maggi, conhecido como o “rei da soja” — autor da lapidar frase “esse negócio de floresta não tem o menor futuro” — amplia os possíveis motivos do crime, incluindo entre outros o “separatismo”, e prevê entre as condutas que podem ser consideradas terrorismo o “apoderar-se”, mesmo que de modo parcial ou temporário, de “instalações públicas”.

IHU On-Line – O que essa proposta de Lei antiterrorismo demonstra sobre o atual momento político brasileiro?

Deisy Ventura – O curioso é que a polêmica em torno das leis sobre terrorismo não ocorreu no momento da apresentação destes projetos, e sim quando alguns Senadores, como Jorge Viana e Paulo Paim, passaram a defender a tramitação do PLS 499/13 em caráter de urgência, em resposta à grande repercussão da morte de um cinegrafista, atingido por um artefato explosivo durante uma manifestação contra o aumento das tarifas de transporte coletivo, ocorrida em 06 de fevereiro último, no Rio de Janeiro.

Esta vinculação entre a aprovação sôfrega de uma lei sobre o terrorismo e as manifestações populares que floresceram no Brasil a partir de junho de 2013 mereceu o repúdio de lideranças sociais e de alguns órgãos de imprensa. Na capa do jornal Correio Braziliense, por exemplo, o PLS 499 foi diretamente associado ao Ato Institucional nº 5, o famigerado AI5.

Isto fez com que o Senador Romero Jucá apresentasse, em 18 de fevereiro último, uma nova proposição, o PLS 44, semelhante ao PLS 499/13, mas com importante excludente de criminalidade: “Não constitui crime de terrorismo a conduta individual ou coletiva de pessoas, movimentos sociais ou sindicatos, movidos por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando contestar, criticar, protestar, apoiar com o objetivo de defender ou buscar direitos, garantias e liberdades constitucionais” (art. 3º). Em outras palavras, não seria terrorista a conduta em prol da ordem jurídica vigente (defender ou buscar direitos, garantias ou liberdades constitucionais) e, portanto, que se opera nos limites desta ordem. Desnecessário mencionar o amplo leque de interpretações que tal norma suscitaria.

IHU On-Line – Há declarações de que a proposta de lei retoma iniciativas repressivas do período militar. Concorda?

Deisy Ventura – Concordo. Contrariando sua finalidade aparente, os projetos em apreço parecem retomar a ideia de que é melhor combater do que definir o terrorismo. A avassaladora má fama do termo obnubila o fato de que quanto menor a precisão do tipo penal, maior a margem de discricionariedade do Estado para impor processos e sanções excepcionais.

Por exemplo, durante o regime militar (1964-1985), o Decreto-Lei nº 898/1969 determinou que o sempre indefinido ato de terrorismo, quando resultasse em morte, seria punido com “prisão perpétua, em grau mínimo, e morte, em grau máximo” (art. 28).

A ainda vigente Lei de Segurança Nacional (7.170/1983), embora com penas mais modestas, estipula as duas finalidades que tornariam criminosa a prática de condutas como “devastar”, “depredar” e “provocar explosão”, ou de “atos de terrorismo”. Seriam elas o “inconformismo político” ou “a obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas”. Aliás, a adorável expressão “inconformismo político-social” aparece já na primeira lei de segurança nacional do regime militar, o Decreto-Lei nº 314/1967, ao lado de outro florão do léxico autoritário, o “facciosismo”. O fato é que, até hoje, muitos governantes não superaram a dificuldade de lidar com o inconformado ou o que toma partido, se não for o deles.

Sob esta ótica, nada melhor do que um inconformado violento. Gosto muito de um livro de Mireille Delmas-Marty que analisa a repercussão “desumanizante” dos atentados de 11 de setembro de 2001 sobre o direito penal [2]. Ela diz que o episódio parece ter liberado as autoridades, política, simbólica e juridicamente, da obrigação de respeitar os limites próprios do Estado de Direito. E alerta para o risco de jogar fora a democracia sob o pretexto de defendê-la: “reduzindo as liberdades, o Estado se injeta, numa verdadeira estratégia de autoimunização, uma parte do mal, assumindo o risco de uma violência que se alimenta de outras e termina por contaminar todo o sistema”.

IHU On-Line – Como entender essa proposta de lei nos dias de hoje?

Deisy Ventura – Ao ler a justificativa oficial do PLS 499/13, anexa à proposição, constatei que ela demonstra, antes de qualquer coisa, uma imensa ignorância sobre a história desta nefasta palavra. As leis antiterroristas têm sido o recurso empregado por quem controla o Estado, em geral durante lutas independentistas, separatistas ou de resistência aos regimes totalitários, para descartar definitivamente os seus opositores do campo da lei comum e da negociação. O terrorista, mais do que fora da lei, passa a ser aquele que se encontra fora do humano, por sua infâmia absoluta.

Tive a felicidade de assistir, em 2010, a montagem que Stanislas Nordey fez de “Os justos”, peça em que Albert Camus discute o indiscutível: o quanto de violência a luta por uma causa justifica? No início da trama, na Rússia de 1905, a presença inesperada de duas crianças compromete a realização de um atentado contra a família do czar, por hesitação de um militante. Esta preocupação com a morte de inocentes nunca abandonou Camus: num bate-boca em Estocolmo, em 1957, ele disse a um estudante argelino que cobrava seu apoio à Frente de Libertação Nacional algo como: “enquanto estamos falando, bombas são jogadas nos bondes da Argélia. Minha mãe pode estar em um deles. Se isto é justiça, eu prefiro minha mãe”. Mas ao tratar da Argélia, sua terra natal, Camus reconhecia a espiral de violência: “cada repressão, ponderada ou demente, cada tortura policial e cada julgamento ilegal acentuaram o desespero e a violência nos militantes” [3].

Se pensarmos que a grande infâmia do terrorista é crer que uma causa justificaria o sacrifício da vida humana ou do patrimônio, falar de terrorismo no Brasil seria, antes de qualquer coisa, evocar o terrorismo de Estado, do passado e atual. A leitura do Anuário Estatístico do Fórum Brasileiro de Segurança Pública — divulgado em novembro de 2013, que compila dados oficiais — é bastante instrutiva para quem acredita que o problema da violência no Brasil é a estratégia “black bloc” ou o pesadelo da Al Qaeda: em média, “ao menos cinco pessoas morrem vítimas da intervenção policial no Brasil todos os dias, ou seja, ao menos 1.890 vidas foram tiradas pela ação das polícias civis e militares em situações de confronto [no ano de 2012]”. Um dos campeões mundiais em mortes por armas de fogo, o Brasil ostenta números que superam os de conflitos armados em diversas regiões do planeta: mais de 50 mil homicídios em 2012. Tem a quarta maior população carcerária do mundo, perdendo apenas para ChinaEstados Unidos e Rússia.

A sociedade brasileira vive num fogo cruzado. À medida que a violência se naturaliza, numa espiral repressiva, a impossibilidade de diálogo se cristaliza. Todo regime de exceção, parcial ou total, é uma confissão de abandono da política e de paixão pelo poder.

IHU On-Line – Que ações de fato se enquadram em atos de terrorismo?

Deisy Ventura – Como já disse, o Direito brasileiro não prevê tais ações. Tampouco o Direito internacional chegou a uma definição geral e abstrata do terrorismo. Mas alguns Estados o fazem.

Para os Estados Unidos, por exemplo, o terrorismo é o uso premeditado da violência por motivos políticos, contra não combatentes, por grupos clandestinos ou subnacionais. Este conceito é autoexplicativo: a ação militar norte-americana em diversos países do mundo seria facilmente considerada terrorismo de Estado caso adotássemos, por exemplo, a definição do PLS 499. A famosa “guerra contra o terror” conduzida pelo Presidente George W. Bush foi, na verdade, fachada para incontáveis intervenções americanas em territórios estrangeiros, com os mais variados fins. Afirmou-se inclusive a tese da proporcionalidade na interpretação do princípio da dignidade humana: quanto mais grave a acusação, menor a dignidade do acusado. Um belo livro do cartunista brasileiro Angeli, intitulado O lixo da história [4], retoma com genialidade as imagens da “era Bush”.

O pior é que mesmo as mais duras leis antiterrorismo fracassaram no que se refere à proteção dos civis. Ao contrário, alimentaram a violência, como foi o caso do Exército Republicano Irlandês – IRA e do País Basco e Liberdade – ETA. O “terrorista” de hoje só se torna o possível interlocutor político de amanhã quando ele é reintegrado à esfera da lei comum, ao campo da negociação possível. Mireille Delmas-Marty e Henry Laurens ensinam que esta foi a regra nas lutas pela libertação nacional que hoje são, quase consensualmente, reconhecidas como legítimas [5].

Mas nada justifica que o Brasil venha aderir de forma acrítica à parcialíssima visão de segurança norte-americana. Muitas vezes, o terrorismo foi referido como “arma dos fracos”, em alusão ao uso da violência por quem foi privado de espaço efetivo na disputa institucionalizada pelo poder. Foi o caso do “terrorista” Nelson Mandela, encarcerado por quase três décadas, hoje beatificado pelos meios de comunicação como grande pacifista. Foi o caso de numerosos movimentos de libertação nacional no processo de descolonização. Na atualidade recente, há o exemplo da Irmandade Muçulmana, que passou a ser oficialmente designada pelo Egito, em 25-12-2013, como organização “terrorista”, embora o partido que a representa tenha recebido mais de 13 milhões de votos (51,73% do total) nas eleições presidenciais de 2012. É evidente que os militares egípcios, que depuseram o presidente Mohamed Morsi, valem-se da lei antiterrorismo para impedir que a Irmandade Muçulmana volte a conquistar o poder pela via institucional, e para desqualificá-la diante da comunidade internacional.

Por tudo isto, não existe um sentido preciso e unívoco da palavra terrorismo, como mal absoluto a ser combatido. Ao sabor do tempo, do lugar e do contexto, pelas mais variadas razões, legítimas ou inaceitáveis, seres humanos são levados a ou optam por recorrer a ações consideradas ilegais por uma ordem jurídica. Só se pode opinar caso a caso. Para chegar a uma definição geral e abstrata do terrorismo seria preciso acreditar que a ordem jurídica encarregada de determinar o que é legal ou ilegal está acima de qualquer crítica. Isto equivaleria a renunciar, por exemplo, à legítima defesa em relação ao status quo. Supondo que um dia eu pudesse acreditar em algo assim, certamente não seria hoje. Por isto, esta palavra merece ser usada entre aspas, ou no plural, terrorismos.

IHU On-Line – Como o Direito internacional trata o termo terrorista?

Deisy Ventura – As convenções internacionais referem-se a atos criminosos específicos, sem, contudo, oferecer uma definição geral de terrorismo. Esta característica costuma ser denominada “enfoque setorial”, como, por exemplo, o apoderamento ilícito de aeronaves (convenção de 1970); crimes contra agentes diplomáticos (1973); tomada de reféns (1979); proteção do material nuclear (1980); segurança da aviação civil e da navegação marítima (1988); ou ainda o financiamento do terrorismo (1999). Assim, a preocupação do Direito internacional está voltada, sobretudo, ao fomento da cooperação internacional para persecução aos crimes, e muito especialmente ao compartilhamento de informações.

Neste particular, há o problema das listas, elaboradas por países ou organizações, de pessoas ou grupos que são considerados terroristas. Por tudo que já destaquei, é preciso ter um aguçado senso crítico em relação aos critérios utilizados para definir quem é terrorista. É comum, por exemplo, encontrarmos nestas listas antigos aliados dos regimes ocidentais, que hoje não servem mais.

Isto não significa, de modo algum, conivência com a prática de crimes ou com a impunidade. O direito internacional, por meio do Estatuto de Roma, de 1998, tipifica os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra, e cria uma jurisdição internacional para processá-los, de caráter subsidiário às jurisdições nacionais. Esta deve ser a principal preocupação do direito penal internacional. Caso prevaleça uma visão internacionalista baseada nos direitos humanos, a traiçoeira expressão terrorismo está fadada à desaparição, e o combate aos crimes contra a humanidade e de guerra será cada vez mais forte.

IHU On-Line – A proposta de lei está recebendo muitas críticas. Quais são os riscos caso essa lei seja aprovada?

Deisy Ventura – O que chama mais a atenção no PLS 499/13 é o crime de incitação ao terrorismo, previsto em seu artigo 5º. Nada mais é dito sobre este crime, além de “incitar o terrorismo: Pena – reclusão de 3 a 8 anos”. Na versão do PLS 44/14, esta pena é aumentada em um terço se o crime for praticado por meio da internet. São também crimes o financiamento de atividades “terroristas” e o dar abrigo à pessoa que “esteja por praticar” ato “terrorista”. Todos estes crimes são inafiançáveis e insuscetíveis de anistia, graça ou indulto. Ou seja, a depender do que se considera terror ou pânico generalizado em um dado momento, expressar uma opinião crítica numa rede social, por exemplo, poderia ser enquadrado como incitação ao terrorismo. Assim, uma lei deste tipo compreende um aparato de repressão completo e criminaliza inclusive a solidariedade.

IHU On-Line – A proposta de lei é uma tentativa de conter possíveis manifestações na Copa?

Deisy Ventura – Se aqueles que defendem uma lei antiterror pretendem forjar uma “paz social” para consumo durante a Copa, seria um preço muito alto a pagar por uma bagatela. Fazer com que o Brasil não pareça violento aos olhos dos estrangeiros é tão possível quanto enxugar o mar.

No plano político, já houve a decisão de reprimir com vigor as manifestações populares, o que inclui bater, prender, fichar e processar manifestantes, mas também acuar jornalistas e advogados. Ao fazê-lo, as polícias têm incrementado seu largo histórico de violações de direitos humanos. E para isto elas não precisam de leis antiterrorismo. Do ponto de vista da propaganda política, as expressões “vândalo” e “black bloc” já têm cumprido seu papel de desqualificação do “adversário”, repetidas à exaustão. Vejo com grande tristeza o desperdício do potencial político desta geração que vai às ruas, que deveríamos conhecer e com quem devemos dialogar. Mas, voltando a uma expressão de Camus, aqui “a responsabilidade coletiva erigiu-se em princípio de repressão”.

Objetivamente, a desproporção entre os efetivos policiais e as poucas dezenas de pessoas que se utilizam da violência durante manifestações populares é patente. Digamos que há um movimento amplo de sujeição da sociedade brasileira aos interesses do mercado, disfarçados de interesse público (ou, no caso da Copa, nem isto), no qual pontualmente se inserem alguns destes projetos de lei. O maior problema é que projetos como o PLS 499elevam as possibilidades de repressão pelo Estado a um patamar que ultrapassa largamente este momento.

IHU On-Line – Há necessidade da criação desta lei? Quais são as leis que já dão conta de ações que o Senado pretende tipificar como terrorismo?

Deisy Ventura – Todas as condutas que resultam em lesão ou ameaça de lesão à vida, à integridade física ou ao patrimônio, tanto público como privado, já são crimes no Brasil, especialmente por força do Código Penal. Sob a perspectiva do interesse público, o importante agora seria fazer com que o Direito Penal fosse cumprido com maior equidade, celeridade e eficiência. Infelizmente, o desempenho do nosso país em matéria de cumprimento das leis é pífio, em particular daquelas que concernem à efetividade dos direitos fundamentais.

NOTAS

[1] As penas seriam aumentadas de um terço se a conduta for praticada com emprego de explosivo, fogo, arma química, biológica ou radioativa, por meio informático ou outro meio capaz de causar danos ou promover destruição em massa (I); em meio de transporte coletivo ou sob proteção internacional (II); por agente público, civil ou militar, ou pessoa que aja em nome do Estado (III); em locais com grande aglomeração de pessoas (IV); contra o Presidente e o Vice-Presidente da República, o Presidente da Câmara dos Deputados, o Presidente do Senado Federal ou o Presidente do Supremo Tribunal Federal e o Procurador-Geral da República (V); contra Chefe de Estado ou Chefe de Governo estrangeiro, agente diplomático ou consular de Estado estrangeiro ou representante de organização internacional da qual o Brasil faça parte (VI)(Nota da entrevistada)

[2] Liberdades e segurança num mundo perigoso. Paris: Seuil, 2010. (Nota da entrevistada)

[3] Réflexions sur le terrorisme, Paris: N.Philippe, 2002.

[4] São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

[5] Terrorismes – Histoires et droitParis: CNRS, 2010.

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