João Fellet – Enviado especial da BBC Brasil a Dourados (MS)
Os irmãos Devanildo, de 19 anos, e Ioracilmo, 26, deixavam em maio passado um bar próximo à reserva indígena de Dourados, no sudoeste de Mato Grosso do Sul, quando foram atacados.
A índia guarani kaiowá Doraci Cláudio encontrou os filhos à beira da estrada, os corpos rasgados por lâminas.
Perto dali, seis anos antes, a polícia foi acionada para recolher o corpo de um jovem desfigurado por 25 golpes de facão, a maioria no rosto. Era Vanilson, 26 anos, também filho de Doraci.
“Nunca acaba a dor de perder um filho, e eu perdi três”, ela diz.
As mortes dos irmãos ilustram a gravidade da violência sofrida por indígenas em Mato Grosso do Sul. Dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) obtidos pela BBC Brasil com base na Lei de Acesso à Informação revelam que em nenhum outro lugar do país tantos índios morrem por causas externas.
Entre 2007 e 2013, o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) de Mato Grosso do Sul registrou 487 mortes violentas de índios, das quais 137 por homicídio.
Ao menos 14 assassinatos ocorreram em 2013 na reserva de Dourados, onde Doraci perdeu seus filhos. O dado confere à área o índice aproximado de 100 mortes por 100 mil habitantes, maior que a taxa de homicídios no Brasil (25,8) e até que a da capital mais violenta do país, Maceió (79,8).
A reserva, onde 14 mil índios dividem 3,5 mil hectares, é quase uma extensão da cidade de Dourados, com características comuns a bairros periféricos brasileiros. Em comparação, na Amazônia, grupos indígenas com população menor que a da reserva sul-mato-grossense costumam dispor de áreas cem vezes maiores.
A insegurança vivida pelos índios de Mato Grosso do Sul se faz notar até no gosto musical dos jovens. Conjuntos de rap que denunciam o racismo e a violência em grandes cidades brasileiras se tornaram populares entre o grupo.
O gênero tem ganhado expoentes dentro da própria comunidade, como os pioneiros Brô MC’s.
Os dados de suicídio entre os índios de Mato Grosso do Sul também estão entre os maiores do país.
Nos últimos 7 anos, o DSEI local registrou 98 casos, quase todos entre jovens guarani kaiowá. A taxa, porém, pode ser muito maior, já que 109 mortes por estrangulamento não tiveram sua intenção determinada.
Autor de uma dissertação de mestrado na USP sobre o tema, o antropólogo Spensy Pimentel associa o fenômeno a um processo iniciado há quase um século, quando o extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) passou a expulsar indígenas das terras em que viviam para liberá-las para o agronegócio.
Essas ações, que se estenderam até o fim da ditadura militar, nos anos 80, agruparam famílias indígenas sem laços históricos em reservas com espaço e recursos limitados, gerando conflitos.
Nessas áreas, as famílias deviam obediência a indígenas empoderados pelo regime militar para agir de forma autoritária. Foi nesse ambiente violento e miserável, pouco alterado desde então, que os suicídios se tornaram frequentes, diz Pimentel.
Autoria dos crimes
Essas condições também ajudam a explicar, segundo os índios, os altos índices de homicídio na região. Ainda que não haja informações sobre os autores de crimes contra os índios, parentes de vítimas e lideranças comunitárias de Dourados ouvidos pela BBC Brasil atribuem a maioria das mortes a moradores das próprias áreas indígenas.
Segundo o cacique kaiowá Getúlio Juca, os crimes na reserva de Dourados geralmente envolvem o consumo de álcool ou drogas. Embora uma lei federal criminalize a a venda de bebidas a indígenas, ele diz que o comércio ocorre livremente nas aldeias e em bares do entorno.
A responsabilidade pela segurança em áreas indígenas é compartilhada. Cabe à Polícia Federal proteger as terras de agressões externas e à polícia estadual, coibir e investigar crimes entre indígenas. Desde 2011, a Força Nacional também tem patrulhado a reserva. Os índices de violência, contudo, não se alteraram.
O delegado Lupércio Degerone Lúcio, da Polícia Civil de Dourados, admite que “não há um efetivo combate” da venda de bebidas na área, tarefa dificultada pelos vários acessos à reserva.
Ele diz, contudo, que a polícia tem se esforçado para investigar os homicídios e que há dezenas de índios condenados por crimes. O delegado afirma que em muitos casos, porém, não é possível provar a responsabilidade de suspeitos detidos pelos índios, que acabam liberados.
Segundo o cacique Juca, a inoperância policial faz com que muitos indígenas busquem punir os assassinos de seus parentes, gerando um ciclo de vinganças.
Ele diz que, como a polícia e a Justiça não têm conseguido pôr fim à violência na reserva, os líderes têm discutido criar um grupo de “segurança tradicional” para cumprir as funções policiais.
Mortes por acidente
O DSEI Mato Grosso do Sul também detêm, entre todas as áreas indígenas do país, os maiores índices de mortes acidentais. Desde 2007, houve lá 27 mortes por afogamento e 33 por acidentes de transporte.
Atropelamentos são especialmente comuns nos numerosos acampamentos erguidos por índios à beira de estradas. Fugindo das péssimas condições nas reservas demarcadas e buscando recuperar terras que dizem ter sido de seus antepassados, eles têm ocupado, desde a última década, áreas que hoje pertencem a fazendeiros.
As ações obrigaram a Funai (Fundação Nacional do Índio) a iniciar estudos para avaliar se as áreas de fato abrigavam indígenas e demarcá-las. No entanto, os fazendeiros têm conseguido travar os processos na Justiça.
Enquanto as disputas avançam a conta-gotas, os índios se expõem aos riscos de confrontos com seguranças de fazendas. Eles atribuem a “pistoleiros” uma série de mortes de indígenas na última década, entre as quais as dos líderes Nísio Gomes e Marcos Verón.
Os índios também associam as mortes por atropelamento à “luta pela terra”. Na comunidade de Apyka’i, erguida no meio de uma plantação de cana na estrada entre Dourados e Ponta Porã, a frequência dos acidentes é assombrosa.
A cacique Damiana Cavanha mostra à BBC Brasil as sepulturas de seis parentes mortos nos últimos anos. Seu marido, dois filhos e dois netos morreram atropelados, e uma tia, envenenada por agrotóxicos.
A juíza federal Adriana de Zanetti determinou que a comunidade fosse expulsa da área até 15 de fevereiro, o que ainda não ocorreu.
A cacique afirma que não deixará as terras, que considera um “tekoha” (“lugar onde se pode viver do nosso próprio jeito”). Ela diz que seus antepassados, entre os quais seu pai, estão enterrados no local.
Na semana seguinte à visita da BBC Brasil, houve outra morte na comunidade. Deuci Lopes, de 17 anos, foi atropelada por um caminhão.
Ela deixou um filho de 2 anos.
É extremamente lamentável o nível mental que andam por ai usando,é inconcebível que um país constituído à partir de uma pluralidade étnica,haver tanto preconceito e intolerância às diferenças, numa clara demonstração do quanto ainda temos a crescer no campo da cultura e da sabedoria….