Os protestos no Brasil e o desafio às Ciências Sociais

Luciana Ballestrin* – Adital

As Ciências Sociais possuem singularidades absolutamente distintivas das Ciências Exatas e afins que marcam complexos de inferioridade explicativa ou de superioridade intelectual. Nossa incapacidade de formular “leis” sociais, políticas e culturais atestam para alguns uma clara limitação e impossibilidade científica. O fato de sermos ao mesmo tempo sujeito e objeto nas nossas análises afastam a pretensão positivista da neutralidade, sendo o nosso poder de predição quase nulo diante do laboratório da experiência humana.

Constantemente, a comunidade de cientistas sociais exercem uma espécie de autoanálise que permite compreender e aceitar nossas diferenças no contestável campo científico. Ao identificarmos que a vontade de saber é uma vontade de poder; que a própria construção do que é ciência é inscrita em um processo político e econômico global; que as humanidades institucionalizaram-se com e contra as relações imperiais e coloniais do poder, saber e ser, e que aquilo que é aceito como legitimamente científico produz um tipo de injustiça cognitiva, liberta-nos de comparações inglórias, ao mesmo tempo em que projeta-nos invariavelmente no universo da intelectualidade pública.

O rótulo do ser intelectual costuma ser visto com antipatia por aqueles que denunciam a distância por vezes abismal entre o mundo teórico e prático, a vida dentro e fora dos muros das universidades. Ora, transform(ação) implica claramente em ação, e julgamentos comuns não a concebem no interior do campo da teoria, essa sim “alienada”. Como não lembrarmos da famosa pichação do Maio de 1968 francês na Sorbonne: “Não teríamos mais problemas quando o último sociólogo fosse estrangulado com as tripas do último burocrata”? E, com efeito, os intelectuais tornam-se em si um importante objeto sociológico, assim como a dualidade entre teoria e práxis. Mas, o fazer teórico sobre a política implica em politizar a teoria nos entornos específicos da militância ou academia; daí que a relação entre teoria e prática é sempre relacional e transcendente ao lócus científico autorizado. Intelectuais vanguardistas, orgânicos, públicos e populares: sabemos que títulos honoríficos apesar da legitimidade coroada, não constituem e não definem uma pessoa intelectual.

Desde o ano de 2013, o Brasil tem testemunhado um fenômeno social e político que guarda algumas semelhanças com outros contextos locais e nacionais, de difícil explicação por quem assim deseja fazer. Neste momento, e em todo mundo, parece que a única certeza tem sido a de que todos nós – como curiosos, cidadãos, intelectuais, cientistas sociais, ativistas, militantes, pessoas enfim, – estamos protagonizando um período histórico de difícil enquadramento, compreensão e encaixe. Estamos diante de uma conjuntura particularmente estranha, no que pese uma série de questões anteriormente mais ou menos definidas e identificadas. Os aportes teóricos e as referências históricas que possuímos para explicar e comparar os acontecimentos das manifestações nacionais e internacionais têm se revelado claramente insuficientes para darmos conta dos sinais que diferentes povos cotidianamente não se cansam de emitir.

Na realidade brasileira, o anseio por mudanças alia-se ao medo das incertezas e é entre eles que as opiniões dividem-se: céticas, entusiastas, pasmas, indiferentes, paralisadas. O monopólio para a interpretação correta do que está acontecendo torna-se impossível e indesejável na busca pela prudência. As teorias sociológicas sobre os movimentos sociais, ação coletiva e sociedade civil necessitam incorporar uma série de variáveis difíceis em sua simples identificação. Neste contexto, diariamente a internet tem sido fundamental para a divulgação e troca de comentários, análises e opiniões que às vezes caducam na velocidade dos acontecimentos; cientistas sociais de todas as gerações somam-se como cidadãos na esfera pública virtual.

Assim, no Brasil as análises desde e sobre as jornadas de junho tem se dividido em incentivo, estranheza ou receio. Em jogo, uma conjuntura política nacional que deixa pouco espaço para a aposta na incerteza movimentalista vis-à-vis a certeza institucionalista, necessária ainda que neutralizada. Em 2014, copa do mundo, eleições presidenciais e cinquentenário do golpe civil-militar: um cenário inédito, logo imprevisível, cheio de sonhos e temores.

Muito se tem dito sobre a presença de milhares de jovens nas ruas deste Brasil. Trata-se de uma nova geração, com outras referências, códigos, sociabilidades, identidades e desejos que a maioria ou a velha guarda não consegue captar – talvez algo desde o início e em essência já desmanchado no ar. Na rua, lutas, ideologias, discursos, ações, sentidos, performances, teatralizações e desobediência civil em direções diversas, opostas e semelhantes, que acabam por se aglutinar em torno de uma única noção identificada: protesto.

Simpatizando ou não com os acontecimentos que têm sacudido as ruas, com maior intensidade em certas capitais, algumas evidências são de difícil contestação. O Brasil tem vivenciado meses de intensa politização da vida social, na qual a violência estatal e social ganhou um espaço de reflexão e manipulação novos porque em função da repressão aos próprios protestos – não podemos esquecer que o primeiro debate a pautar a violência no Brasil, deu-se em 2005 com a derrota da sociedade civil no Referendo das Armas pelo voto direto e popular.

Tenta-se encontrar padrões de repetição histórica em outras manifestações aqui e no mundo, desde o século XIX; mas, gostando ou não, a coisa é nova e o desconhecimento gera medo, cautelar ou reacionário.

Enquanto isso, rearticula-se de maneira impressionante, um discurso fascista travestido de direito à divergência e liberdade de pensamento. Suas marcas principais, para além do espaço que tem conquistado na mídia, é a intolerância, o ódio, o preconceito, o desrespeito e a truculência. Não suporta a existência do outro e da outra diferente. Por mais que as manifestações mostrem o contrário, devido ao caldeirão (des)ideológico, é este mesmo discurso que todos os dias mostra com força que não somente esquerda e direita ainda existem em seu sentido dicotômico, como esta última, também, atrai novidades. É nova porque faz justiça com as próprias mãos e palavras, sabendo que está servindo para algo assustadoramente considerado do bem, com aval da concessão pública. Por seu turno à esquerda, as novidades são deslizantes e vulneráveis, com capacidade criativa e instigante. O problema maior vai além da acusação governista, mas de uma certa recusa ao mergulho na luta difícil, profunda e diária dos meandros institucionais partidários e sistêmicos que muitos cansados ainda insistem em travar.

Duas palavras chaves não podem se perder dos nossos horizontes: democracia e justiça. Afinal, contra quais injustiças as ruas estão realmente lutando? Afinal, qual a plataforma democrática que está por se sugerir? Daqui certamente podem sair respostas genuínas e inspiradas, e daí conseguimos entender certas coberturas midiáticas criminalizantes e conservadoras. Mas existem outras respostas que estão sendo elaboradas e canalizadas para muito longe da luta pela democracia e pela justiça, somando-se ou inspirando as novidades à direita. E é isso que causa tanto medo de ações etéreas porquanto não a interpretamos: o aprofundamento de um abismo nefasto já aberto, cheios de postes a nos esperar.

(*) Coordenadora do Curso de Relações Internacionais da UFPel.

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