Por Vanessa Ramos
Da Página do MST
Lançada no final do ano passado, a Medida Provisória nº 636, conhecida como MP da Reforma Agrária, traz consigo uma proposta que poderia acabar com grande parte do que já foi conquistado na luta pela terra no Brasil.
Trata-se da nova percepção da titulação dos assentamentos, um instrumento que transfere o imóvel rural ao beneficiário da Reforma Agrária em caráter definitivo. Nessa nova proposta, há a possibilidade das famílias assentadas venderem seus lotes. Na percepção do governo, a titulação daria maior autonomia aos agricultores sobre a terra onde vivem e produzem.
No entanto, para Débora Nunes, da coordenação nacional do MST, isso permitiria uma regressão das conquistas da Reforma Agrária e um aumento ainda maior da concentração da terra no país.
A questão é que a iniciativa vai despertar a cobiça do agronegócio sobre as terras da Reforma Agrária. Em outras palavras, o Brasil aprofundará ainda mais sua condição de latifúndio, uma vez que o agronegócio fará pressão sobre o pequeno agricultor a fim de comprar as terras que vivem.
As consequências para a produção de alimentos, para a agroecologia, para a diversidade ambiental podem ser irreversíveis, segundo Débora. Mais camponeses seriam expulsos do meio rural, as cidades inflariam ainda mais e a monocultura agrícola cresceria.
Confira a entrevista:
O que prevê essa titulação das áreas de Reforma Agrária contida na MP da Reforma Agrária lançada no final do ano passado?
Essa política visa conceder um título de propriedade privada às famílias assentadas. Atualmente, todas as terras da Reforma Agrária são públicas, e as famílias ganham um título de concessão de uso da terra. Mas com essa política, as pessoas teriam o direito de vender seus lotes.
Essa tentativa vem desde a época do Fernando Henrique Cardoso. O argumento é o mesmo, de que ao conceder o título da terra o agricultor deixaria de ser dependente do governo e de políticas públicas.
Desde o governo de FHC existe a ideia de que os assentamentos precisam ser emancipados. Emancipados de que? Na concepção do governo, emancipados do Estado, do atendimento, das políticas públicas.
O governo Lula não teve coragem de retroceder essa manobra política. Agora, no governo Dilma, há uma tentativa de se aprofundar isso.
Utilizam o argumento de que o título de propriedade da terra é um anseio das famílias. Mas no fundo, quando o governo define que vai conceder títulos, está querendo se livrar de uma responsabilidade, jogando os problemas, sobretudo, para os trabalhadores.
E qual a proposta do Movimento?
De fato, é importante que as famílias tenham um título sobre o lote, por isso propomos que haja um título de concessão de uso da terra, com direito à herança, mas que a venda seja proibida.
Explicamos a situação à presidenta Dilma e ela pareceu compreender o grave problema que estaria por trás dessa política sugerida pelo governo.
E quais são os problemas?
A questão da posse da terra no Brasil sempre foi muito ameaçada pelos grandes proprietários de terra, pela grilagem. A proposta do governo cria uma falsa segurança de que ninguém vai tirá-lo, nenhum grileiro ou fazendeiro vai tomar a terra.
Mas isso não só não resolve o problema como cria outros. Uma vez que o governo titula, ele passa a estimular a venda de lotes da Reforma Agrária, por dois motivos essenciais: o primeiro é que o agronegócio também está de olho nas terras da Reforma Agrária, e ofereciam milhões por elas.
O segundo componente é que o Estado também pretende se livrar de um problema que não resolveu. Os assentamentos com um nível de precarização maior, sem infraestrutura social e produtiva, também contribuiria para que as pessoas abandonassem a área rural.
Aumentaria ainda mais a concentração da terra?
Seria um retrocesso, sem dúvida. Atualmente, vivemos numa conjuntura em que o governo não tem coragem de priorizar a Reforma Agrária e assentar as famílias acampadas.
Em contrapartida, eles adotam medidas como essas que, com certeza, representam um retrocesso. Uma das coisas que a Reforma Agrária fez, além de contribuir para democratizar a terra, foi permitir o acesso a terra, ao trabalho, apesar de todas as dificuldades e a falta de políticas públicas.
Além disso, a Reforma Agrária devolve ao povo seu próprio território, já que as famílias têm concessão de uso da terra, mas estas terras são públicas, o que ajuda a preservar a soberania do nosso país.
Mas com essa política o governo regride na perspectiva da democratização da terra, porque a possibilidade da venda permite um maior aumento da concentração da terra. Além disso, correríamos o risco de termos nossa soberania ainda mais dilapidada, já que qualquer pessoa, inclusive estrangeiros ou empresas transnacionais, poderiam adquiri-las.
Isso poderia impactar na produção de alimentos?
De acordo com o Senso Agropecuário de 2006 do IBGE, a terra destinada à Reforma Agrária tem cumprido a sua função, quando demonstra que boa parte dos alimentos que vai para a mesa da família brasileira é oriunda da pequena agricultura. O agronegócio não produz alimento, só produz para a exportação.
Uma vez que haja mais terra concentrada, menos gente vivendo no campo, a tendência é que a produção de alimento também fique em risco.
Isso impacta na produção de alimentos, na geração de trabalho, haverá gente expulsa do campo, aumentando o caos social que os grandes centros urbanos vivem, a falta de mobilidade social, a falta de emprego. São medidas que afetam questões estruturais da nossa sociedade como um todo.
E o controle das empresas sobre a produção alimentar também aumenta?
Sim, aumenta o controle das empresas sobre a produção alimentos e daquilo que as empresas se propõem a produzir, criando uma série de outros problemas. Primeiro, não garantiriam a soberania alimentar, já que não seriam mais os pequenos agricultores, os camponeses que decidiriam sobre a produção de alimentos, deixando de respeitar, inclusive, a diversidade alimentar e cultural.
Grande parte dos problemas que a nossa sociedade vive, a falta de educação, a violência de forma geral, é consequência desse inchaço e falta das condições necessárias para a população sobreviver. Com o aumento do êxodo rural isso se agravaria. O projeto do agronegócio é um campo sem gente, sem vida, sem escola, e isso impacta na cultura e num projeto de sociedade que os camponeses querem construir.
E teria impactos ambientais?
Vivemos a disputa entre dois projetos: o agronegócio, que propõem um campo sem gente, degradado, que se baseia na monocultura, não respeita a biodiversidade, a terra, o solo e privatiza os recursos naturais.
Do outro lado, temos a nossa proposta, que chamamos de Reforma Agrária Popular. Visa sobretudo uma agricultura sustentável, que respeite o meio ambiente, que respeite a vida, não produza alimentos contaminados pelos agrotóxicos.
Mas se a terra passa a ser privatizada, se esses assentamentos que se tornaram terras públicas e que poderiam ser um espaço de resistência e de produção desse novo projeto, se ele está em risco, consequentemente, há o risco da proposta e as contradições do agronegócio avançar ainda mais.