Por Liana Aguiar, de Barcelona para a BBC Brasil
Uma ação coletiva inusitada surpreendeu os cartórios da Espanha. Mais de 200 mulheres entraram com um pedido de registro de propriedade sobre o próprio corpo. A iniciativa foi um protesto à reforma de lei que restringiria o direito ao aborto no país.
A reforma foi proposta pelo governo conservador do premiê Mariano Rajoy. Nesta terça-feira, a oposição apresentou um pedido ao Parlamento para retirar o projeto da pauta, mas acabou derrotada em uma votação secreta. O debate, portanto, continuará.
O ato nos cartórios foi realizado no último dia 5, simultaneamente, em seis cidades da Espanha: Madri, Barcelona, Bilbao, Sevilha, Pamplona e Pontevedra.
Em Barcelona e Madri, os cartórios acataram o pedido e estão fazendo os trâmites, o que surpreendeu as organizadoras do protesto.
“É uma ação simbólica”, disse a idealizadora da iniciativa, a artista e ativista social Yolanda Domínguez. “Esse projeto é um retrocesso, uma limitação de nossas liberdades”, disse.
‘Corpo feminino’
Segundo as organizadoras, o ato foi pensado para para mostrar que as mulheres estão “fartas de que todo mundo decida sobre o corpo feminino”.
“Foi uma maneira de reivindicar o direito de decidir sobre nosso corpo. Já que nos tratam como objetos, queremos reforçar que ‘meu corpo é minha propriedade'”, explicou a ativista.
José Antonio Calvo González de Lara, de um cartório de Madri, afirmou que dará a resposta oficial em até 15 dias, mas se mostrou cético.
“Recebemos as solicitações tal como rege a lei espanhola e vamos tramitá-las. Mas como gente não é coisa, não será fácil fazer o registro”, adiantou.
Para a organizadora da iniciativa em Barcelona, Patricia Soley Beltran, doutora em sociologia de gênero e professora universitária, a solução está na prevenção.
“Ninguém aborta alegremente e sem refletir. O que se tem que discutir é como evitar uma gravidez indesejada, com mais educação sexual e com ajuda às mulheres que querem abortar por motivos econômicos, em vez de se legislar de maneira invasiva”, sugeriu.
Yolanda se disse contente com a repercussão e contou que tem recebido e-mails de mulheres de outros países, inclusive do Brasil, que querem realizar ações coletivas como as espanholas.
“Embora o estopim na Espanha tenha sido um assunto local, a coisificação do corpo feminino é um assunto global. Em outros países, as mulheres continuam lutando pelo direito ao aborto”, afirmou Yolanda.
Reforma restritiva
O projeto de “lei de proteção da vida do concebido e dos direitos da mulher gestante” restringe os critérios para o aborto, previstos em uma lei de 2010, aprovada durante o governo socialista de José Rodriguez Zapatero.
Na proposta em discussão, a interrupção só será permitida em casos de estupro (até a 12ª semana de gravidez) e de risco para a vida ou saúde física ou psíquica da mulher (até a 22ª semana).
Além disso, será necessária a avaliação prévia de dois médicos. As mulheres que considerem abortar terão acompanhamento, que detalhará as alternativas existentes, como a adoção. Jovens de 16 e 17 anos também precisarão pedir autorização dos pais para abortar.
Pela legislação de 2010, a mulher pode interromper a gravidez voluntariamente até a 14ª semana.
Apresentada em dezembro passado, a reforma tem suscitado uma série de manifestações no país pelo direito à interrupção da gravidez. Partidos da oposição e representantes de associações pelos direitos femininos argumentam que, se entrar em vigor, a lei vai ocasionar mortes por abortos clandestinos.