Stuart Hall, os black bloc’s e a criminalização dos movimentos sociais

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Foto Página dos Black Block

De Douglas Belchior

Mãos que acendem o rojão;
Mãos que empunham as armas que obrigam a autodefesa dos que acendem rojões;
Mãos dos que dão a ordem aos soldados que reprimem com armas manifestantes que por sua vez, acuados, se auto-defendem;
Mãos que assinam decretos que aumentam o peso da exploração do povo;
E “mãos que se rendem, por outras que tudo levam…”
E a polícia e a imprensa sangrenta procuram as mãos assassinas… Mas que mãos são assassinas?

Em meio ao debate sobre a trágica morte do trabalhador cinegrafista da Rede Bandeirantes Santiago Ilídio Andrade, atingido por um rojão durante um dos protestos contra o aumento das passagens no Rio de Janeiro, meu companheiro de luta antirracista Deivison Nkosi, professor universitário e militante do grupo Kilombagem, aprofunda a reflexão através de um interessante paralelo com o pensamento do intelectual jamaicano Stuart Hall, morto também essa semana.

Vale a pena ler!

Por Deivison Nkosi – Grupo KILOMBAGEM

Neste dia 10 de fevereiro, morreram dois homens que ficarão para a história.

A primeira morte, ocorrida em Londres, Stuart Hall, um intelectual jamaicano que vivia na Inglaterra e principal nome dos estudos pós-coloniais, nos deixa uma robusta produção teórica que ainda não foi suficientemente dimensionada. Seu vasto campo de estudos, trás como elemento importante, a desconstrução da racialização e dos estigmas (presentes e atuantes) provocados pela colonização. Toda morte é uma perda, mas esta, ganha notoriedade por ser de um intelectual (diaspórico) que em vida, provocou-nos a pensar o mundo, para além do que nossa visão turva estava disposta. Uma morte que anuncia o fim do ciclo de vida de um ser humano, que deixou suas contribuições para além de seus limites biológicos. Hall “after life”  ainda será foco de muitas reflexões.

A segunda morte, e não menos importante (aliás, dessa se falará muito mais pelos próximos tempos) é do trabalhador-  também negro –   cinegrafista da Rede Bandeirantes Santiago Ilídio Andrade, de 49 anos, morto em serviço após ser alvo acidental de algum tipo de explosivo durante os protestos contra o aumento de passagem no Rio de Janeiro. Uma tragédia sem precedentes que certamente será utilizada contra os movimentos sociais brasileiros.

Uma tragédia para amigos e famílias do cinegrafista; uma tragédia para a categoria de jornalistas, mas, sobretudo, para o conjunto dos movimentos sociais, que a muito vem denunciando as desigualdades do nosso país. A tragédia é sem precedentes, não porque nunca houve acidentes a repórteres durante as manifestações – aliás, se a Associação dos Profissionais do Repórteres Fotográficos – AFORC fizer uma retrospectiva em seus documentos, encontrará uma grande lista de reportes agredidos e gravemente feridos neste tipo de evento pelas força da ordem. A tragédia é sem precedentes, porque ao que afirmam empolgadas as controversas investigações (com advogado de miliciano defendendo “black bocker” e vinculando indiretamente o nome de políticos que ameaçam a atual hegemonia política-eleitoral no RJ), o “artefato” causador da morte saiu das mãos de um manifestante.Bingo!!!!

“Era a brecha que o sistema queria”, avisa os carniceiros “que chegou o grande dia”

O que assusta, nesta paráfrase dos Racionais MCs, além da tristeza e pesar pela morte de  um ser humano no exercício da sua função, é ver confirmado na Televisão (Tiravisão, como classifica o meu tio evangélico) um aspecto medonho da teoria de Stuart Hall:

O significado não é um reflexo transparente do mundo da linguagem, mas surge das diferenças entre os termos e as categorias, os sistemas de referência, que classificam o mundo e fazem com que ele seja apropriado desta forma pelo pensamento social e o senso comum. (Hall, 2009:177)

A trágica morte do Santiago não terá o mesmo significado que a morte de outros trabalhadores de sua cor (neste país que mata negro por ser negro): Não porque sua profissão seja melhor do que a profissão dos trabalhadores (a maioria negros) mortos nas obra da Copa ou do PAC, não porque esse confronto (que ele cobria e registrava) seja diferente dos outros em que repórteres também  foram agredidos e até mutilados no exercício da função (me refiro ao repórter que perdeu o olho em Junho de 2013 após ter sido atingido por uma bala de borracha disparada pelos aparatos de repressão estatal).  O significado desta morte, está justamente na – ha muito tempo esperada – chance de colocar a tragédia na conta dos movimentos sociais.

É aqui que o pensador jamaicano (que infelizmente também morreu hoje) entra novamente para nos ajudar: a racialização, para ele (inspirado em sua leitura de Frantz Fanon), não é só o preconceito ao negro, mas é o ato de depositar no Outro (esse outro pode ser o gay, o negro, a mulher, os árabes, os movimentos sociais) as agressividades libidinais que são nossas (da sociedade como um todo).

Dizer que foi o Black Bloc que assassinou o jornalista, é ignorar que essa tática (eles não são um grupo, mas uma tática de autodefesa) só é útil diante da violenta, exagerada e desmedida REPRESSÃO POLICIAL. É ignorar que em geral, a violência em manifestações é sempre deflagrada pela repressão que elas encontram, e não aleatoriamente, como insistem em rotular os grandes veículos de comunicação; é  maquiar os dados de forma que  o problema passe a ser quem luta, e não o aumento da passagem, a mobilidade urbana e as desigualdades sociais.

O problema, que não é só dos cariocas, é que a significação (o significado) da morte do jornalista está em disputa, e a criminalização destes movimentos não será isolada, mas repercutirá em todo o contexto da luta de classes no Brasil (é amigo, ela existe, é só assistir o Jornal Hoje, que vc verá na nota de repudio da AFORC lida pela repórter global, com uma raiva que faz a higienista repórter do SBT Cheirazade parecer pacifista):

“Nós, jornalistas de imagem, exigimos que as autoridades de segurança do estado do Rio de Janeiro instaurem imediatamente uma investigação criminal para apurar quem defende, financia e presta assessoria jurídica a este grupo de criminosos, hoje assassinos, intitulados black blocs, que agridem e matam jornalista e praticam uma série de atos de vandalismos contra o patrimônio público e privado”, 

As Notas emitidas pelos órgãos de representação dos jornalistas não falam da violência policial, não dizem por que havia manifestação, mas incita o ódio institucional aos militantes… não se enganem! O apelo não é apenas contra o black bloc!

Ou o conjunto dos movimentos sociais se posiciona (aqui eu prefiro o Gramsci ao já saudoso Stuart Hall) nesse “jogo de significados”, politizando este debate em outros termos, ou assistiremos, de camarote no sofá das 8hs, a criminalização absoluta a qualquer tipo de movimento social que entrar em confronto com as forças de repressão do Estado… É sabido que os grandes meios de comunicação estão a serviço de um projeto de sociedade que garanta, mesmo sob nossos corpos, a plena circulação de mercadorias para acumulação de capitais.

Há um silencio desta grande mídia com a violência implícita às péssimas condições de vida; na imbecilização de seus suaves venenos midiáticos; no assassinato sistemático de jovens negros pelas periferias do Brasil. Mas ao mesmo tempo, evidente o seu apoio à aprovação das chamadas leis antiterrorismo em seu foco de institucionalização do terror contra quem ousar desafiar os grandes interesses em nome da vida (como é o caso de moradores desabrigados pelos governos locais, a mando da especulação imobiliária ligada à Copa do Mundo).

Se ficar provado que o dito “artefato” foi mesmo deflagrado por um manifestante, resta aos movimentos envolvidos fazer uma autocrítica e discutir criticamente os limites e possibilidades desta e de outras táticas de resistência ou enfrentamento. Pois de fato, qualquer passo em falso, será sempre usado contra os mais fracos. Mas é preciso não perder de vista que na imensa maioria das vezes (como no caso da manifestação em questão), quem inicia o confronto violento são as forças de repressão do Estado, buscando dispersar os manifestantes a bombas e cacetadas.

Choremos essa trágica morte, pois uma vida se perdeu… E uma vida interrompida é sempre o sinônimo de uma tragédia incalculável no seio da família e amigos que ficam… choremos por essa tragédia, mas não subestimemos a violência que esta se advogando contra quem, a partir de hoje ousar enfrentar estes “podres poderes”.

A Direita (bingo, ela também existe!!!) não se importa com mais um (negro) trabalhador morto em serviço- não esqueçamos que ele não usava os equipamentos de seguranças recomendados para esse tipo de ação, como capacete – mas explorará a dor dessa perda e  a indignação destes profissionais para legitimar seus próprios projetos espúrios.

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