Mais do que um beijo gay

Créditos da foto: Divulgação
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O beijo gay mais comentado apareceu na Globo, mas, se cabe um elogio pelo feito, não é para a emissora, nem para o autor ou os intérpretes

Vitor Necchi* – Carta Maior

A Rede Globo finalmente liberou o beijo gay. A afirmação soa estranha, pois pode sugerir que uma emissora de televisão tenha poder para arbitrar a subjetividade, os afetos, o desejo, o que é circunscrito à esfera do particular, do pessoal. Óbvio que não. Cada um sabe de si. Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, escreveu Caetano. Diria mais: muitos sabem das agruras para se enfrentar a sordidez da vida, o preconceito, a intolerância, o olhar censor, o não acolhimento, a chacota, o desprezo, a agressão – seja simbólica, seja na carne golpeada, na pele rasgada, no hematoma contabilizado como violência urbana pelo discurso de recusa à concretude da homofobia. Mas a Globo exibiu dois homens se beijando no dia 31 de janeiro, e isso não é pouca coisa, pois cada um sabe das dores de se constituir e viver nestes tempos em que persiste a intolerância. Portanto, cada vez mais, segue o debate.

Enfim: veio o beijo no epílogo da novela Amor à vida, de Walcyr Carrasco. Na discussão momentaneamente sem fim das redes sociais, alguns tentaram esvaziar a importância do feito, pois se trataria de oportunismo da Globo, de estratégia para conquistar audiência polpuda. A desqualificação sustentava-se ainda no fato de que o gesto provém de emissora cuja programação costuma expor gays estigmatizados, caricatos ou atormentados – ressalvando-se que traços afeminados não devem ser tratados como negativos, pois não existe problema nisso. Havia mais críticas, muitas procedentes, mas arrisco propor que, neste momento, isso tudo não se impõe.

Nos últimos anos, viveu-se no Brasil uma espécie de vigília por um beijo gay em novela de grande audiência. Dois homens e duas mulheres já se beijaram na televisão brasileira, mas sem impacto, por conta da audiência modesta, do pouco destaque dos personagens e do contexto. Perto do final de Amor à vida, estabeleceu-se uma expectativa, quase torcida, nas redes sociais: haveria ou não beijo gay?

Se acontecesse, seria uma derrota pontual da onda fundamentalista que tenta disseminar dogmas morais e religiosos em assuntos que deveriam pertencer ao mundo laico, ao universo do particular. Não se pode esquecer que, em tempos de Felicianos, Malafaias e Bolsonaros, é preciso estar atento para conter o ódio e o preconceito. Assim, dois marmanjões se atracando na TV constituiriam um golpe e tanto contra a sanha dos pastores e do militar travestidos de políticos.

O beijo gay mais comentado em muito tempo apareceu na Globo, mas, se cabe um elogio pelo feito, não é para a emissora, nem para o autor ou os intérpretes. O grande reconhecimento cabe ao movimento LGBT, aos gays e às lésbicas que buscam respeito e dignidade – muitas vezes à custa de sofrimento – e às pessoas que já assimilaram algo estrondosamente óbvio: não faz sentido discriminar alguém por conta da condição sexual.

Esse beijo histórico, retroativamente, construiu-se nos guetos, na clandestinidade, longe do público, em espaços onde o desejo e o afeto eram vividos às escondidas.

Ele resulta também das vozes emanadas das ruas, das manifestações, das alegres e festivas paradas livres. Ele é fruto da coragem de quem ousou ser o que é, mesmo contrariando a barbárie repressora imposta pela sociedade. Não teria capacidade instantânea de erradicar a homofobia, por outro lado, no plano simbólico, é inegável que esse beijo entre iguais instaura um novo patamar no debate pautado pelas temáticas LGBT, e do acúmulo de conquistas e derrotas advém a trajetória de uma causa.

O ranço e o menosprezo com a cultura de massa não devem encobrir o fato irrevogável de que telenovelas – tão desprestigiadas por segmentos mais críticos – incidem na formação do imaginário nacional e pautam muito do que se fala e pensa no cotidiano. Portanto, em um momento de agravamento da violência contra indivíduos cuja sexualidade destoa do padrão heteronormativo, danem-se os pruridos e o preconceito contra telenovelas. Deve ser amplamente comemorado e potencializado o fato de que o folhetim eletrônico permitiu que se avançasse no combate à homofobia. As ruas evidenciam que se vive um acirramento do ódio contra gays – registre-se que, neste texto, não se está falando de outros grupos altamente marginalizados e agredidos, como as travestis, que também têm grande mobilização. No embate pela conscientização, as novelas podem ser aliadas estratégicas.

Se em muitos ambientes e grupos a troca de carinhos entre dois homens ou duas mulheres é vista com naturalidade, não se pode esquecer a existência de pessoas que nunca viram um beijo gay e se surpreenderiam se vissem. Talvez não entendessem. Talvez não tenham condições emocionais e referências culturais para lidar com isso. Desejos represados, interdições morais e religiosas, ignorância – enfim, são muitas as possíveis explicações para a intolerância. Neste contexto, Amor à vida apresentou o beijo entre dois homens como algo comum – o que de fato é –, e algo se rompeu. No ambiente doméstico, a poucos passos do sofá, da poltrona ou da cama, próximo do fogão, seja onde for, dois homens se beijaram.

O empacotamento desse beijo foi bem feito, destoando da edição apressada e das soluções imperfeitas do restante do capítulo final. A linguagem empregada, o plano sequência raro em novelas que antecedeu o clímax, a música do compositor austríaco Gustav Mahler (1860-1911) e as referências ao cineasta italiano Luchino Visconti (1906-1976) – cujo filme Morte em Veneza é caro ao gays – contribuíram para que esse momento da teledramaturgia brasileira se tornasse histórico.

O encontro dos lábios masculinos não se deu com qualquer melodia fácil ou canção da moda. Ao som do Adagietto, quarto movimento da Sinfonia Nº 5 de Mahler, os atores Mateus Solano e Thiago Fragoso consagraram o amor de seus personagens para o grande público. Este trecho, assim como outros da Sinfonia Nº 3 do mesmo compositor, foram usados por Visconti em sua obra que retrata a paixão platônica de Gustav von Aschenbach, compositor no ocaso de sua vida, por Tadzio, efebo belíssimo.

Ainda embebido da referência e ao som de Mahler, o final da novela emulou a derrocada do personagem de Visconti que, sentado à praia, aturdido pela paixão improvável, sucumbe à saúde fragilizada. Félix, o personagem de Solano, acomodou na beira da praia seu pai (Antônio Fagundes), que vestia um chapéu parecido com o de Aschenbach. O beijo, já foi dito, é emblemático, mas o que se processou ao término de Amor à vida talvez seja mais significativo. Pela primeira vez, o pai, que passou toda a trama repelindo Félix, deixando claro sua repulsa, esse mesmo pai, agora com sequelas de um AVC, admite – Adagietto ao fundo – que ama o filho.

Fim.

O que aconteceu naquela noite de sexta-feira não se resume a um beijo. O impacto foi maior do que o provocado por uma passeata gigantesca, por um anúncio de página dupla no jornal de domingo ou por uma propaganda no intervalo do capítulo final da novela. Tratava-se da própria novela, narrativa tipicamente brasileira, detentora de imenso poder de sugestionamento. E, transcorrido pouco tempo, muita coisa já aconteceu. Pastores neopentecostais protestaram e propuseram boicote à Globo, enquanto falam em diabo e degradação moral com uma retórica apocalíptica e esvaziada de lógica.

Na contramão da intolerância e do transe místico-homofóbico, as singularidades das vidas ordinárias sinalizaram que não imperam apenas trevas. O clima de final de campeonato de futebol e os gritos de comemoração que esquentaram ainda mais a noite abrasada do verão, quando Solano e Fragoso se beijaram, expressam acolhida. Um ex-aluno, emocionado, registrou em seu Facebook o recado que recebeu do pai via celular: “Filho, teve o beijo do Félix. O pai te ama”. Outro aluno, não menos comovido, compartilhou na mesma rede social que a mãe comemorou como se fosse uma vitória dela – e é.

Há mais histórias que começaram a aparecer no rastro da novela. No dia seguinte ao capítulo derradeiro, Maju Giorgi, mãe e militante da causa gay, reproduziu em seu blog o relato que recebeu de um menino que não era aceito pela família:

“Estavam todos na sala… eu no sofá quando o Félix beijou o carneirinho… Silêncio…Fiquei quieto também pra não dar motivos, embora estivesse fazendo a drag por dentro… Mas a cena final, do Félix e do César, eu não aguentei, veio um choro descontrolado que estava preso esses quatro anos que não falamos direito, estava total descontrole… daí veio minha mãe com a cara inchada de chorar me abraçar e meu pai do outro lado segurou minha mão e pôs a mão em volta do meu ombro… Não falamos nada! Na hora de dormir, o Felipe (irmão) entrou no quarto, deu a mão e quando eu ia apenas apertar, ele me puxou, deu um abraço e disse que ele sempre vai ser meu irmão. E chorei de novo… Pela primeira vez não dormi no inferno…”.

É importante que se mantenha os fatos em sua configuração original. Nas redes sociais, surgiram comentários pretensamente engajados de que não se tratava de um beijo gay, mas de um beijo de amor. Sim, um beijo de amor, mas protagonizado por dois homens. Apagar o gênero dos personagens é tentativa de sublimar a homossexualidade do casal. Não foi um beijo qualquer, foi um beijo entre dois homens na programação de uma emissora que influencia fortemente o imaginário do país.

Não deixa de ser estranho que, em 2014, se comemore a representação ficcional de um beijo entre pessoas do mesmo sexo. Mais estranho ainda é a dependência que se tem de uma emissora de televisão. Mas assim se processa a construção de um imaginário social pautado em grande medida pela mídia, então, o que se deve esperar é, conforme campanha recente da ONG Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade, “Que, daqui pra frente, qualquer beijo seja simplesmente um beijo”.

Foi um beijo tímido, é verdade. Faltou gana. Não se deve esquecer, no entanto, que, conforme o roteiro, era um beijo trivial, matinal, de despedida entre alguém que fica em casa e outro que vai trabalhar. O autor queria algo prosaico e amoroso. Não se deve esquecer, sobretudo, o mais importante: no último capítulo da telenovela em horário nobre da emissora com maior audiência no Brasil, dois barbados se beijaram, e o pai preconceituoso assumiu seu amor pelo filho gay.

*Jornalista e professor.

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