A síndrome de Cirilo e o ciclo de violência familiar

Imagem: Pink Sherbet Photography, Flickr
Imagem: Pink Sherbet Photography, Flickr

Por Anônima, em Blogueiras Negras

A primeira vez que vi o termo Síndrome de Cirilo, me identifiquei de imediato com a ideia mas só depois de algum tempo caiu a ficha do que aquilo representava para mim. Eu sou filha de uma relação que surge a partir de uma síndrome de Cirilo e desde então não paro de pensar como isso influenciou e influi na minha vida desde sempre. Não é viagem e nem tampouco histeria, como tem nos taxado algumas pessoas ao discutirmos questões como essa. Trata-se, antes de mais nada, de entender como certos tipos de relações podem afetar nossas vidas pessoais.

Meu pai sempre foi o tipo de negro que fingiu a vida toda que o racismo nada tinha a ver com a vida dele. Isso trouxe para mim consequências terríveis uma vez que nunca me senti a vontade para dividir a dor de passar pelo racismo que eu passava na escola, por exemplo. Ele também escolheu uma mulher branca para se casar. As consequências desse ato, que decorreu da falta de orgulho de si mesmo que meu pai sentia, trouxe-me as piores consequências. A mulher que meu pai escolheu, minha mãe, além de ser branca é também racista. Com certeza alguém dirá: impossível! Como uma branca racista pode se casar com um negro? A resposta a essa pegunta não é nenhum pouco simples mas no caso da minha mãe, e pelo que ela própria relata, parece ter ocorrido uma certa falta de opção.

Ela era uma imigrante nordestina em Brasília e trabalhava como empregada doméstica, como meu pai se interessou por ela, acredito que ela tenha visto nele uma saída para aquela situação em que ela vivia pois na época meu pai trabalhava e ganhava relativamente bem, com certeza mais que uma empregada doméstica. Sem falar nos relatos que ela conta até hoje do que passou nas “casas de madame”. O que parece ter ocorrido foi uma espécie de acordo tácito em que minha mãe emprestaria ao meu pai a ascensão social que sua imagem de mulher branca representava e meu pai ofereceria a ela um trampolim para sair de uma vida sem nenhuma expectativa de melhora e de ascensão, visto que minha mãe, além de tudo, é analfabeta.

O tempo passou e eu nasci. Acredito que não possa haver nada pior para uma menina negra do que ser criada por uma mulher racista. Durante toda minha infância e adolescência fui criada entendendo que eu era feia, que meu cabelo era ruim e precisava ser domado, que eu deveria ser presa dentro de casa para não dá trabalho e não me tornar uma vagabunda na rua. Essa foi a tônica de toda minha criação. Aos nove anos já estava sendo levada ao salão de “beleza” para alisar meu cabelo. Quando não dava para alisá-lo deveria mantê-lo preso com a trança e o coque que ela fazia para “domar a juba”. Além de tudo isso fui criada por minha mãe ouvindo o seguinte tipo de frase quando aparecia uma mulher negra na TV: “Essa mulher é pretinha mas até que é bonitinha”. Quando cresci e comecei a soltar meu cabelo e deixá-lo ao natural parecia que tinha cometido um crime. Perdi as contas de quantas discussões tive com minha mãe por causa disso e de quantas vezes ela me disse que meu cabelo era horrorosso.

A família do meu pai, toda composta por negros, é muito grande ele teve 12 irmãos e minha mãe sempre os abominou. Até hoje quando ela vai falar da família do meu pai ela usa os seguintes termos para se referir a eles: “raça ruim”, “raça maldita” e etc. Em uma clara alusão a raça negra deles. Meu pai por sua vez sempre tratou e ajudou muito a família da minha mãe e inclusive meu avô que é extremamente racista e sempre que vem nos visitar deixa isso muito claro, mesmo assim meu pai morre de amores por ele e o trata muito bem. Ademais meu pai foi e é humilhado a vida toda por minha mãe que sempre vez questão de deixar claro que é superior a ele. Mesmo assim, meu pai nunca esboçou nenhuma reação para terminar o casamento.

Dentro de um clima desses não é difícil imaginar o quanto as relações familiares dentro da minha casa foram permeadas de violência. As discussões e agressões são frequentes e minha mãe passou a minha vida inteira falando mal do meu pai para mim, o que se configura inclusive, como alienação parental. Mais do que um relato da minha vida pessoal, essa história serve para que as pessoas reflitam em como o racismo pode ser cruel com os negros. Eu podia ter tido uma vida e uma relação familiar saudável mas isso me foi negado. O racismo me negou uma família de verdade, o racismo só me mostrou a violência. Se o racismo no Brasil não fosse como é: velado, meu pai poderia ter se casado com uma negra, minha mãe jamais teria aceitado se casar com o meu pai e eu jamais teria passado por tudo isso e teria os problemas que tenho hoje decorrentes dessas relações, inclusive psicológicos.

Além de tudo isso, para fechar esse ciclo de violência eu dificilmente me casarei ou terei um relacionamento duradouro pois essa é a realidade das mulheres negras hoje no Brasil. Elas são rejeitadas pelos negros e vistas pelos brancos como meros objetos de desejo sexual. Espero que o texto tenha sido elucidativo para as pessoas entenderem que as consequências de uma síndrome de Cirilo podem ser bem piores do que podemos imaginar. Me pergunto quantas famílias no Brasil estão na mesma situação por causa disso. O problema é grave e muito mais sério do que possamos imaginar.

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