Para não esquecer

O presidente Emílio Garrastazu Médici na Escola Militar de Porto Alegre durante o período de maior repressão da ditadura militar instaurada em 1964
O presidente Emílio Garrastazu Médici na Escola Militar de Porto Alegre durante o período de maior repressão da ditadura militar instaurada em 1964

Golpe militar no Brasil completa 50 anos e é tema de publicações, entre livros de memória, história, estudos políticos e reportagens. Editoras anunciam novos títulos sobre o período

Por João Paulo, em O Estado de Minas

Há uma circunstância peculiar em torno do golpe militar de 1964. Ao mesmo tempo em que faz parte da história muito próxima dos acontecimentos, pode parecer algo distante para gerações que não foram testemunhas dos fatos e conviveram com interpretações marcadas pelo peso ideológico. Ao se aproximar das cinco décadas do 31 de março de 1964, o interesse pelo tema tem, exatamente por isso, um novo sentido. Já há distanciamento e volume de estudos suficientes para tratar do golpe militar com profundidade e, ainda, suas marcas estão presentes na sociedade, na economia e na política brasileira. Tão longe, tão perto.

A nova safra de trabalhos sobre 1964 começa a se avolumar. Depois do sucesso de livros de fundo histórico, o mercado parece ter percebido que tinha um bom assunto nas mãos e cuidou de preparar obras de todo calibre e estilo para marcar os 50 anos do golpe. Contou ainda com a produção acadêmica, que vem se concentrando em aspectos do período que haviam ficado de fora até então, entre eles a dimensão cultural, de política externa e até de dissenso no interior das Forças Armadas.

A isso se somam ainda vários aspectos conjunturais, como a recuperação da disposição militante dos jovens – ainda que dispersa –, os trabalhos da Comissão da Verdade e a nova posição do país no atual momento internacional. Sem falar da recente retomada da memória histórica em torno do golpe, que era consagrado como uma ação militar exógena e não um acordo do qual fizeram parte na primeira hora setores da sociedade civil e da imprensa, que depois se retiraram para reescrever uma história para a qual reservaram para si papel de resistência, que a bem da verdade foi tardia.

Em torno de uma história aparentemente objetiva, muita ideologia rolou por sobre a ponte dos fatos. O golpe civil-militar de 1964, tramado dentro das fronteiras do país e com apoio externo (sobretudo dos Estados Unidos), seria responsável pela interrupção de um processo político, social e econômico e a inauguração de outro. Sai de cena a modernização a ser alcançada por meio de reformas sociais, distribuição de renda e democracia participativa e entra em seu lugar uma modernização conservadora, fundada na ideologia da segurança nacional, com exclusão das classes populares em todos os sentidos. De corte conservador, a modernização foi tocada por uma ditadura militar e uma tecnocracia civil e servil, sempre com o recurso da máquina repressiva para “correção” dos desvios.

Esse enredo cinquentenário, como se vê, permite muitas abordagens, da história ao jornalismo, da sociologia à política, do testemunho pessoal à pesquisa. Esses são alguns dos caminhos das obras que estão chegando aos leitores. Entre os primeiros livros que já estão nas livrarias se destacam 1964 – O verão do golpe, de Roberto Sander (Editora Maquinaria); A ditadura que mudou o Brasil – 50 anos do golpe de 1964, organizado por Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta (Zahar); e 1964 – História do regime militar brasileiro, de Marcos Napolitano (Editora Contexto).

Golpe de verão
 O jornalista Roberto Sander trabalhou cinco anos em cima de seu 1964 – O verão do golpe. O livro é uma tentativa de articular, em forma narrativa, os acontecimentos que antecederam o golpe, a partir da crise do governo Jango e dos primeiros meses de 64. Feito sobretudo a partir de material pesquisado na imprensa, enriquecido com entrevistas e consulta a algumas teses, o livro não tem intenção de interpretar o período, mas de dar ao leitor a sensação de testemunhar os fatos. O autor dividiu o livro em semanas, o que dá um toque ainda mais jornalístico, como se cada capítulo, como uma revista, procurasse dar conta do correr dos acontecimentos. O enredo vai de 1º de janeiro a 15 de abril de 1964.

Assim, o leitor vai acompanhando o desdobrar dos fatos, numa narrativa tensa, com uso de diálogos e outros recursos para dar ainda mais dramaticidade. O thriller histórico tem um ritmo tocado pelos eventos: avanços de recuos de partidos políticos, greves, crises, comícios, avanços da esquerda e reação da direita, sempre por meio da ação de personagens reais. Uma história viva que, ao fim de cada mês, ganha uma seção dedicada às modas da época. Como numa espécie de pano de fundo para a tensão política, Sander lembra o leitor que era também o tempo de Brigitte Bardot como musa do verão, do samba esquema novo de Jorge Ben, do rock dos Beatles, do engajamento de Nara Leão, do Cinema Novo de Glauber e das musas do teatro.

No último capítulo, “Meio século tentando entender – 1964-2014”, o jornalista faz um balanço da participação de cada setor, dos militares às elites civis, passando pelos grupos de resistência e pela odiosa história da tortura vigente durante os 25 anos da ditadura militar. E conclui que as feridas permanecem abertas e os criminosos ainda impunes. “Neste sentido, o golpe ainda não terminou”, afirma.

Legado e superação O volume coletivo A ditadura que mudou o Brasil – 50 anos do golpe de 1964 tem outra composição. Organizado a partir de colaborações de especialistas acadêmicos, entre pesquisadores jovens e veteranos, de várias universidades brasileiras, reúne ensaios temáticos sobre o período, sempre com o viés interpretativo e atual. A pergunta sobre a continuidade da ditadura ou acerca de seus desdobramentos na vida nacional é sempre visível no avesso dos estudos. São 13 textos, que abrangem dimensões variadas da economia, sociedade, cultura e relações internacionais, entre outros temas, sempre com o foco na nova institucionalidade autoritária instalada com o golpe militar de 1964.

Entre os ensaios, Daniel Aarão Reis, em “A ditadura faz cinquenta anos: história e cultura política nacional-estatista”, analisa em linhas gerais o nacional-estatismo ao longo de quatro grandes momentos. Para o autor, há uma ligação entre a ditadura do Estado Novo (1937-1945), os anos democráticos e “dourados” de JK (1955-1960), os “anos de chumbo” do governo Médici (1969-1974), e os dois governos de Lula (2003-2010). De acordo com Reis, há certa “perenidade da cultura política nacional-estatista” ao longo de conjunturas diversas, obviamente com “redefinições e metamorfoses”. Os outros organizadores do volume colaboram com textos sobre o papel das oposições, entre a resistência e interação (mais uma continuidade nítida na política nacional), como analisa Marcelo Ridenti; e acerca da influência das universidades na cultura política nacional, em reflexão de Rodrigo Patto Sá Motta.

Trazendo novos temas para o debate – de certa maneira renovando o campo de estudos, quando se compara com os livros lançados por ocasião dos 40 anos do golpe – estão trabalhos sobre as transformações econômicas e sociais do período, acerca do novo sindicalismo, sobre a produção teatral brasileira (entre o engajamento e o mercado) e tratando da política externa. Em todos os casos, existe uma ambivalência entre a continuidade e ruptura, como se a pergunta sobre a permanência da ditadura ainda se mantivesse operativa mesmo depois de sua derrocada formal. Se a ditadura foi derrotada, podemos falar o mesmo de seu legado? O importante, reafirmam os organizadores, é criar condições de superá-lo.

Cultura e memória O professor de história da Universidade de São Paulo, Marcos Napolitano, está lançando 1964 – História do regime militar brasileiro. Trata-se do mais articulado dos lançamentos recentes, na linha da história narrativa, mas permeado de análises e interpretações. Nos primeiros capítulos, o historiador retoma a ascensão e derrocada do governo Jango e recupera as articulações que levaram ao golpe militar. O autor apresenta ainda a polêmica tese da “ditabranda”, em referência aos primeiros quatro anos do regime militar, com suas ações no campo da economia e no campo jurídico e institucional, além da sequência de atos institucionais, que chegam ao ápice (ou fundo do poço) com o famigerado AI-5. O autor desfaz a argumentação dos liberais, mostrando que a chamada “ditabranda” foi construída, posteriormente, mais como mito que como realidade.

Na sequência, Marco Napolitano trata da cultura no período, identificando três períodos: de 64-68, com o controle e perseguição das atividades intelectuais, que passam a ser objeto de inquéritos policiais-militares (IPMs); de 69 a 78, com a sanha repressiva ao movimento da cultura, sobretudo de classe média, voltada para mobilização política, período marcado ainda pela mais dura censura; e o terceiro momento repressivo, que vai de 79 a 85, mais centrado no controle do que o regime considerava como “processo de desagregação da ordem política e moral”. O autor analisa movimentos ligados à música, ao teatro, ao cinema, à televisão, à literatura, ao jornalismo e às artes visuais, inclusive no período que se segue ao AI-5. Do engajamento político ao libertarismo comportamental, da indústria cultural aos independentes e marginais. Uma “pequena utopia” que ganharia as ruas e daria o “tom das lutas civis a partir dos anos 1970”.

O livro se encerra com uma reflexão importante sobre a questão da memória e da história. No caso brasileiro, a memória do período militar, que se tornou hegemônica pela vertente liberal, condena o regime para preservar o golpe, reconhece a modernização e relativiza o autoritarismo. Os riscos, como alerta, vão na direção de um olhar atenuante, que tende a neutralizar os clamores pela justiça. O trabalho da Comissão Nacional da Verdade, por isso, assume papel fundamental na recuperação da memória e na afirmação dos valores dos direitos humanos, que devem ser considerados inegociáveis. No momento em que o golpe chega ao cinquentenário, a laceração moral da tortura permanece uma chaga aberta com a impunidade dos responsáveis.

Outros títulos estão sendo anunciados para as próximas semanas. Entre eles a reedição da mais importante série escrita sobre a ditadura militar brasileira, de Élio Gaspari, que ganha nova edição revista pela Editora Intrínseca. Além dos já publicados A ditadura envergonhada, A ditadura escancarada, A ditadura encurralada e A ditadura derrotada, será lançado um quinto volume, ainda sem data definida, para completar a série sobre o período. A Zahar criou uma coleção, 1964 – 50 anos depois (da qual faz parte o acima referido A ditadura que mudou o Brasil), que já tem dois títulos programados, Ditadura e democracia no Brasil – Do golpe de 1964 à Constituição de 1988, de Daniel Aarão Reis, e As universidades e o regime militar – Cultura política brasileira e modernização autoritária, de Rodrigo Patto Sá Motta. O jornalista Carlos Chagas também anuncia o lançamento de A ditadura militar e os golpes dentro do golpe – 1964-1969, pela Record, de tom memorialístico. Dando continuidade aos dois volumes de O Brasil sem retoques, Chagas se propõe a contar a história a partir dos jornais e jornalistas.

Só algo pior que uma ditadura: o silêncio em torno dela, que permite que sejam esquecidas suas motivações e métodos. O cinquentenário do golpe militar, além da necessária ação do conhecimento em torno dos fatos e de suas consequências, pode servir para tornar espúria a questão que por muito tempo vem atormentando do Brasil: o que resta da ditadura na sociedade, nas instituições e até nos indivíduos?. Os novos livros parecem mostrar que, em caso de ausência de liberdade, nunca é bom virar a página. Quanto mais páginas, melhor.

A DITADURA QUE MUDOU O BRASIL – 50 ANOS DO GOLPE DE 1964
• Organização de Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta
• Editora Zahar
• 272 páginas, R$ 49,90

1964 – O VERÃO DO GOLPE
• De Roberto Sander
• Maquinária Editora
• 272 páginas, R$ 39,90

1964 – HISTÓRIA DO REGIME MILITAR BRASILEIRO
• De Marcos Napolitano
• Editora Contexto
• 368 páginas, R$ 49,90

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

Comments (2)

  1. Maria,

    gostaria muito de poder acrescentar o livro, cujo título e tema inclusive me deixaram bastante interessada. A questão é que, infelizmente, apenas republicamos a matéria. Não temos condições, pois, nem de retirar qualquer das obras mencionadas, nem de acrescentar outra/s. De qualquer forma, todas as pessoas que lerem fatalmente verão teu comentário e esta minha resposta.

    Por outro lado, suponho que você tenha acesso ao autor. Particularmente, eu teria muito prazer se ele quisesse escrever um texto sobre o livro e a ação desse maldito quarto poder como ‘intelectual orgânico’ do golpe. Ou também podemos arriscar uma entrevista por e-mail, uma vez que pelo visto partimos de uma mesma visão gramsciana. Mas, considerando que por não conhecer a obra eu teria que fazer perguntas óbvias, talvez melhor mesmo fosse um pequeno artigo, de preferência com fotos em anexo: do autor e da capa do livro.

    Aguardo tua resposta.
    Tania.

  2. É DE UM ESCRITOR GAÚCHO,MAS SE PUDEREM ACRESCENTAR FICARÁ MAIS INTERESSANTE E IMPARCIAL A LISTA. AGRADEÇO. MARIA
    “O novo livro de Juremir Machado da Silva – aguardem – fevereiro de 2014:
    “1964 Golpe midiático-civil-militar”

    O golpe de 1964 chega aos seus 50 anos em 2014. O inventário dessa tragédia que abalou o Brasil continua a ser feito. Não foi apenas um golpe militar. Nem somente um golpe civil-militar. É verdade que empresários, governadores e militares atuaram em sintonia. Tem faltado, porém, um elemento no banco dos réus: a mídia. O golpe de 1964 foi midiático-civil-militar. A imprensa, especialmente os grandes jornais de Rio de Janeiro e São Paulo, formadores de opinião, como “Folha de S. Paulo”, “O Estado de S. Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “Correio da Manhã” e “Tribuna da Imprensa”, atuaram como “intelectuais orgânicos” do golpe. Produziram o imaginário, a atmosfera, o clima, o medo e a legitimação necessários ao projeto de derrubada de João Goulart.

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