A medicina ocidental e o conhecimento indígena

João Paulo Barreto*, Amazônia Real

Muitas coisas marcam na nossa vida e são difíceis de esquecer. Não num tempo muito distante, um episódio ficou marcado na nossa família e, mais ainda, como um fato de discriminação intelectual dos nossos conhecedores que nós chamamos com muito respeito de Kumuã, que vulgarmente são chamados de pajés ou xamãs em português. Esse episódio ficou conhecido através da imprensa em níveis local, nacional e internacional.

Aqui, não quero adentrar nos detalhes do fato a não ser partilhar com os leitores uma experiência de discriminação intelectual/racional entre os modelos de conhecimentos num país pluricultural. Em outros termos, o conhecimento indígena colocado sempre como um conhecimento de terceira categoria, pautada nos mitos, lendas, etc.

Aconteceu que minha sobrinha tinha saído da nossa comunidade do Alto Rio Tiquié, da terra indígena do Alto Rio Negro para a capital amazonense a tratamento da picada de cobra jararaca.

Com agravamento da situação de saúde e necropsia do local da picada, somado com a “carnificina” dos próprios médicos, foi decidido pela equipe médica pela amputação de perna da adolescente. O fato nos causou indignação (familiares) e desespero por parte da adolescente e do pai.

Diante da decisão dos médicos, consultamos três kumuã Tukano sobre a condição da necessidade de amputação deferida pelos médicos naquele momento. Todos os kumuã consultados forma unânime em afirmar categoricamente que ainda não era a hora de amputar. Tomados de informações dos kumuã decidimos contra a amputação.

Após grande batalha e “briga” e pela repercussão do fato, a equipe médica decidiu reunir nós (família) e os três kumuã Tukano. Num rápido encontro, e visivelmente irado pela contrariedade da nossa parte, o médico, chefe da equipe, asperamente dirigiu pergunta aos kumuã, sobre quais eram as razões de eles serem contra.

Eles, da sua maneira e com expressão limitada de português responderam sua pergunta. O médico, sem paciência, interrompendo a fala dos kumuã, levantou-se e disse: “eu estudei oito anos para ter autoridade de tomar decisões sobre a saúde de pacientes, enquanto, sobre vocês, não consigo ver o currículo tal como o meu”. Dito isto levantou e convidou a sua equipe a se retirar.

Diante da intransigência do médico, decidimos manter com mais rigor nossa decisão. Essa luta resultou na desistência da amputação e tratamento mais digno pela outra equipe médica. Atualmente, minha sobrinha está com dezessete anos de idade, estuda no colégio Brasileiro no primeiro ano do ensino médio. Perdeu parcialmente o movimento da perna direita, mas anda sem necessidade de auxilio “mecânico”.

Optamos para ela permanecer em Manaus pelo fato de que, na aldeia ela não teria condições de mover-se com eficiência fisicamente devido a sua deficiência adquirida, sobretudo nos afazeres domésticos, como o trabalho no roçado.

Enfim, hoje eu fico me perguntando, que conhecimento é esse tão intransigente com outros modelos de conhecimentos? E sempre carrego comigo aquilo que meu pai, kumu Ovídio Barreto, me fala. Que cada conhecimento tem seu limite e, juntos podem agir num sistema de complementaridade. Isto é, nas suas palavras: aquilo que eu não posso curar, os médicos podem, de igual modo, os que eles não podem, eu posso curar dentro do meu domínio.

Para terminar a conversa eu diria: o fato de eu ser consciente dos fatos, não me obriga a ter teoria sobre o mesmo fato (Fernando Pessoa). Somos apenas Diferentes e temos categorias e conceitos diferentes sobre a mesma realidade.

*João Paulo Barreto é antropólogo e  indígena da etnia tukano (Alto Rio Negro).

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