Tráfico de mulheres viola os direitos humanos

Capa do livro “Tráfico de mulheres na Amazônia”. (Reprodução)

Kátia Brasil, Amazônia Real

A pesquisadora do tema tráfico de mulheres na Amazônia, Márcia Maria Oliveira, também doutoranda do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da UFAM (Universidade Federal do Amazonas), afirma que a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Brasil é uma legislação avançada, mas em sua aplicação, em muitos casos, a vitima é criminalizada junto com o crime organizado. Em entrevista ao portal Amazônia Real a pesquisadora disse que a região amazônica é uma das principais rotas do tráfico de mulheres para exploração sexual. “São crimes que violam os direitos humanos desde o período da colonização da Amazônia”.

Como a senhora analisa os esforços do governo brasileiro nas ações de combate
ao tráfico de pessoas nas fronteiras?

A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas Decreto Nº 5.948, de 26 de Outubro de 2006, que estabelece, dentre outras, as bases do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – PNETP, é uma legislação bastante avançada, em se comparando a outros países, principalmente porque tem por finalidade estabelecer princípios, diretrizes e ações de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas e de atendimento às vítimas. Ou seja, a nossa legislação não criminaliza as vítimas. O problema é que a aplicação da lei, em muitos casos, criminaliza a vítima juntamente com o crime organizado. A meu ver, o problema é operacional. Os agentes institucionais que se encarregam da aplicação da legislação, foram preparados para a repressão ao tráfico de drogas e, muitas vezes, aplicam as mesmas estratégias no caso do tráfico de pessoas.

Qual é o problema na implantar das ações?

Eu considero as diretrizes do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – PNETP um programa muito bem elaborado e com condições de promover a erradicação do tráfico em todas as regiões do país. O problema, é que a operacionalização do PNETP através dos através dos núcleos espalhados nas regiões mais críticas e vulneráveis, não consegue concretizar da legislação. E não é por falta de recursos, pois, o Ministério da Justiça tem disponibilizado grande volume de recursos para esse objetivo. Me parece que o problema está mais na ordem do entendimento do PNETP. Os agentes operacionais deveriam estar mais bem preparados, com formação específica na área, com concurso público. Isso evitaria a contratação de agentes temporários, sem qualificação para exercer uma função que é, a meu ver, bastante exigente. A meu ver, inaugurar um núcleo, montar o escritório com toda a infraestrutura e contratar um agente que fica ali em horário comercial esperando ser procurado para o atendimento, não funciona.

Como deveriam ser operacionalizados os núcleos?

Os núcleos deveriam dedicar boa parte do seu tempo na investigação, na pesquisa de campo, no levantamento da realidade, o que exigiriam profissionais qualificados na área da sociologia, direito, antropologia e serviço social. Ou seja, os postos não podem funcionar apenas com técnicos que não conseguem ter uma dimensão do tema, muito menos da aplicação da política nacional. Da forma que os núcleos estão sendo operacionalizados no Amazonas, especialmente na tríplice-fronteira Brasil – Peru – Colômbia, onde a situação é bastante crítica, não vamos avançar no objetivo de estabelecer princípios, diretrizes e ações de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas e de atendimento às vítimas. Infelizmente, falta vontade política no Estado.

O que a senhora tem a dizer sobre o tráfico de pessoas em reservas indígenas da Amazônia.

As reservas não são tão “reservadas” como se pensa. Há livre trânsito nas reservas e o direito de ir e vir está garantido. Isso as coloca em situação de igualdade com qualquer outro grupo localizado em qualquer outro espaço social. O fato de estar numa reserva indígena não constitui uma garantia de imunidade ao tráfico. Pelo contrário. Mas, vale lembrar, que o tráfico de meninas e mulheres indígenas é muito antigo na região, especialmente nas áreas de fronteira onde há forte presença do Exército que representa a presença do Estado, e nem por isso consegue coibir o tráfico, pelo contrário”, afirmou.

A senhora é uma das autoras do livro “Tráfico de Mulheres na Amazônia”, junto com a professora Iranildes Caldas Torres, publicado em 2012. Quais são os antecedentes históricos do tráfico de pessoas na região?

Durante todo o processo de colonização da Amazônia, os grupos indígenas que permaneceram aldeados às margens dos grandes rios amazônicos foram alvo de toda forma de exploração, inclusive sexual, num processo de contínua vulnerabilidade das mulheres e crianças. No Ciclo da Borracha (1879–1945) foram registrados rapto e a comercialização de crianças e adolescentes do sexo feminino para o trabalho escravo e a exploração sexual. A partir da década de 1960, com o advento da Zona Franca de Manaus, o deslocamento do campo para a cidade tornou-se muito mais intenso e favoreceu o que os estudiosos das migrações definem como feminização das migrações onde as mulheres passaram a migrar em busca de trabalho nas fábricas do Distrito Industrial. Muitas migraram e continuam migrando sozinhas ou por intermédio de amigos, parentes ou conhecidos.

Todos esses elementos nos permitem compreender uma das dimensões da condição da mulher na Amazônia e a necessidade de desnaturalizar as relações de poder e dominação a que fomos e continuamos sendo submetidas. Tais condições de dominação deixam caminhos abertos para a atuação das redes de tráfico em toda a região onde crimes como a pedofilia, o estupro e a escravidão não são denunciados e favorecem a atuação dos aliciadores que recrutam mulheres e meninas para a prostituição nos grandes centros, nos garimpos clandestinos no interior da Amazônia, nas frentes de trabalho dos grandes projetos como a construção do gasoduto de Coari, das hidroelétricas e mineradoras. Além disso, muitas são levadas para outros países com a mesma finalidade”.

Como mudar esse quadro na Amazônia?

De acordo com as análises antropológicas e sociológicas, a única forma de romper com esse ciclo vicioso é investir mais na valorização da dignidade humana na região, promovendo maior acesso à educação, saúde e trabalho. Outra questão importante é investir nos mecanismos de enfrentamentos ao tráfico de pessoais, suas diferentes dimensões, causas e consequências, bem como difundir informações sobre o que pode ser feito para fortalecer os mecanismos de prevenção e atendimento às vítimas. Isso pode trazer uma contribuição importante ao enfrentamento desta grave violação dos direitos humanos na Amazônia.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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