Por César Augusto Baldi em Consultor Jurídico
”Tristeza não tem fim, a felicidade sim”, já cantava Tom Jobim. E tristeza, perseguição, violência, racismos e violações de direitos têm sido uma constante em todas as comunidades negras. No caso de quilombolas, mais ainda. Em alguns casos, como Oriximiná e Kalunga, está-se a exigir imposto territorial rural sobre propriedades que finalmente foram reconhecidas: sem qualquer capacidade contributiva, os valores são superiores aos que a Fazenda, muitas vezes, sequer cobra de sonegadores fiscais. Nos territórios urbanos, são as prefeituras a exigir IPTU, com o fim das “áreas rurais” em muitas localidades.
No Congresso, a sorte não é melhor: a denominada “bancada ruralista” não tem poupado esforços para combater demarcações de terras indígenas e reconhecimento de direitos de quilombolas. Não é por menos: afinal, nos dois casos, as terras estão fora do mercado e não podem ser objeto de apropriação privada e especulação imobiliária. Terras “extra comércio” são terras por demais cobiçadas. Some-se a isso a “maldição da abundância”: locais bem preservadas (“territórios verdes”), riquezas minerais, madeira boa para indústria de celulose, etc. Com o Poder Público também o relacionamento é complexo: serviços públicos não chegam ou estão presentes de forma absolutamente seletiva. Em outras situações, como Marambaia, Alcântara e Rio dos Macacos, é o próprio Poder Público, por meio das Forças Armadas, o maior antagonista de suas lutas. Outras comunidades, por sua vez, só vem sendo atendidas em função da existência e da atuação da Defensoria Pública, porque nem sempre o Ministério Público é o aliado desejável. Um quadro de privação de direitos, de violações frequentes, de “impotência” diante de um “inimigo que não tem cessado de vencer”, nas palavras de Walter Benjamin.
Como se não bastasse tudo isso, uma das poucas decisões favoráveis em todo o país, justamente a do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, envolvendo uma das comunidades mais atingidas pela violência estrutural, institucional e histórica (além de problemas em sua defesa por parte de advogados, não reconhecimento de seus documentos históricos, etc), está a ser questionada, por meio da arguição de inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003, a ser apreciada pela Corte Especial daquele Tribunal no próximo dia 28.
Os argumentos, no geral, não diferem muito daqueles que constam já na ADI 3.239, de relatoria do ministro Cezar Peluso e interrompida, até hoje, por um pedido de vista da ministra Rosa Weber e pela não inclusão em pauta do referido processo pelo ministro presidente, Joaquim Barbosa. São questões que vem sendo levantadas insistentemente contra as comunidades há mais de 10 anos, o tempo de vida do questionado decreto. Permanente sob fogo cerrado. Importa salientar, contudo, alguns pontos a serem pensados.
Primeiro: desde o ajuizamento daquela ação de inconstitucionalidade, junto ao STF, a jurisprudência foi se alterando em relação à questão da impossibilidade de decretos “autônomos”, bem como em relação a estabelecimento de direitos por meio de regulamentos. A constitucionalização do direito administrativo, como salientado por Gustavo Binenbojm, implica o reconhecimento de alteração de paradigmas. Não é possível pensar com os olhos de vinte e cinco anos atrás.
Segundo: ainda que não haja consenso absoluto quanto ao caráter constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, à exceção da previsão do § 3º do artigo 5º (e, mesmo assim, em patamar de equivalência de emenda constitucional), a doutrina de paridade com a legislação infraconstitucional cedeu passo, pelo menos, à “supralegalidade” (tese majoritária, na composição anterior, por 6 a 5). É claro que o STF só tem apreciado questões de cunho individual veiculadas em instrumentos de direito internacional de direitos humanos. Mas desde então, ainda que de forma tímida, o Brasil já teve decisões do STF envolvendo direitos indígenas (Raposa Serra do Sol e Pataxó são alguns exemplos), foi condenado pela Corte Interamericana (julgamento da anistia em relação ao Caso Gomes Lund e, portanto, discussão sobre jurisdição internacional) e presenciou, no âmbito do TST, a realização, pela segunda vez, de uma sessão da mesma Corte. Há, portanto, necessidade de repensar mecanismos de fortalecimento de direitos humanos, comunicando-se os sistemas constitucional, infraconstitucional e supranacional. Algo que Peter Häberle já intuía com o conceito de “Estado constitucional cooperativo” e que a dinâmica de respeito à “dignidade da pessoa humana “ e “prevalência dos direitos humanos” tem que levar em conta.
Terceiro: passados 25 anos da promulgação da Constituição brasileira, e tendo em vista a imensa concentração de terras e a permanência de racismo no país, vai contra o estágio atual da discussão de toda a doutrina no Direito Constitucional nacional o não reconhecimento do autoaplicabilidade do artigo 68 do ADCT e, pois, eventual inconstitucionalidade do referido Decreto. Afinal, não podem ficar confinadas, apenas nos livros didáticos (um “law in books” divorciado de um “law in action”), as afirmações de “concretude constitucional”, “concordância prática”, “máxima efetividade” e “unidade da Constituição”. Aliás, o próprio STF já reiterou que a regra constitucional não “pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental” (AgRg RE 393715/RS, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, julg. 12/12/2006, DJ 02-02-2007, p. 140).
Quarto: E nem se alegue, nesse sentido, violação ao devido processo legal, porque a própria enumeração dos passos a serem seguidos para a titulação da comunidade (em torno de dezessete), com possibilidade de recursos e a necessidade de um minucioso estudo — muito mais amplo que antropológico — incluindo a análise da cadeia dominial poderia sugerir, ao contrário, proteção deficiente — para os quilombolas — de um direito constitucionalmente assegurado. Um procedimento que, no geral, é mais rigoroso que aquele prevista para os indígenas (Decreto 1.775/96) e que foi reputado constitucional (MS 24.045, Rel. Min. Joaquim Barbosa).
Aliás, a realidade dos registros de imóveis — e a anulação de cinco mil títulos no Pará, em 2010, pelo CNJ é apenas um exemplo — joga em sentido contrário à pretensão daqueles que alegam títulos de domínio para situações como as de quilombolas. É que restou “reconhecida a propriedade definitiva” em virtude justamente da posse tradicional. Ou seja, uma realidade fática, tendo em vista a especificidade destas comunidades, a inexistência ou precária existência de prova documental e mesmo a dificuldade de o Judiciário lidar com relatos orais, “história oral” e laudos antropológicos. O artigo constitucional em momento algum exigiu, para tanto, o título registrado; justamente porque o objetivo era a regularização de tais terras, em decorrência do histórico posterior à Lei de Terras de 1850, as disputas fundiárias no início da República e à própria característica- distinta de outros países da América- da abolição da escravatura. Não é, pois, coincidência que a previsão venha juntamente com o centenário desta e que seja previsto o crime de racismo como inafiançável e imprescritível.
Quinto: no mesmo período desde o ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade no STF, a jurisprudência da Corte Interamericana reforçou o entendimento de que o artigo 21 da Convenção, ao referir-se a “propriedade”, abrangia não somente a “privada”, mas outras formas “comunitárias”, de que aquelas de indígenas e comunidades descendentes de escravos eram apenas alguns exemplos. Recorde-se, inclusive, que a Corte colombiana, cuja Constituição (datada de 1991) dá primazia à diversidade cultural, em diversos precedentes reconheceu direitos territoriais, culturais, sociais e políticas específicas para indígenas, afrodescendentes, raizales e, neste ano de 2013, também para ciganos. No ínterim, também, vários países aderiram à Convenção 169-OIT, reconhecendo comunidades descendentes de escravos como incluídas nas previsões desta (Nicarágua, para os creolles e garífunas, em 2010, é apenas um exemplo). Vale dizer: apesar da pressão continental tanto do neoextrativismo quanto das empresas mineradoras, os países vizinhos vêm reiterando tal entendimento. Não é demais lembrar que mesmo a previsão de ações afirmativas, que foram objeto especial de controvérsia, vieram a ser declaradas constitucionais. E já estavam previstas em tratados internacionais, a que o Brasil aderiu.
Sexto: porque decorrido todo este tempo, não há como ignorar os estudos de antropólogos, sociólogos, historiadores em relação ao tema dos quilombolas, procedendo a verdadeira revisão dos conceitos, definições e parâmetros que até então estavam cristalizados. O tema, ao contrário do afirmado no voto do ministro Peluso, não é “metajurídico” ou sequer privilégio do campo jurídico. É um entrelaçamento de saberes, como convém aos tempos atuais. Desfez-se, desde então, a ideia corrente de isolamento territorial, de resíduos arqueológicos e de populações homogêneas, ou de manutenção do conceito colonial presente no Conselho Ultramarino de 1740, ou mesmo de uma “frigorificação” do conceito de comunidade e de etnias. Um processo que, nos países vizinhos, caminha no sentido da descolonização dos conceitos e saberes e que, no campo do direito internacional de direitos humanos, é evidente com a autodefinição ou auto identificação como “critério fundamental para definir os grupos aos quais se aplicam as disposições” da Convenção. Não é demais lembrar — contra as alegações de inconstitucionalidade — de que este não é o único critério; tampouco o Decreto 4.887/2003 assim prevê, mas é evidente que se trata de um elemento altamente questionador tanto do etnocentrismo quanto do racismo da sociedade.
Recentemente, Boaventura de Sousa Santos, em sua manifestação dirigida ao Conselho Nacional do Ministério Público, quando da realização da oficina da Universidade Popular dos Movimentos Sociais, no início de novembro deste ano, em Brasília, afirmou: “Se não for suficientemente ativo, o MP será responsável pelas frustrações de milhões e milhões de brasileiros. Se for ativo, será responsável pelas aspirações desses mesmos milhões e milhões de brasileiros. É uma instituição contraditória, como se sabe, que tem na mão uma parte importante por essas aspirações. Mas ninguém faz o papel dos movimentos, que são autônomos e lutam eles próprios por seus direitos”.
O mesmo pode ser dito, neste momento, do Poder Judiciário. E a atenção das comunidades quilombolas da Região Sul — mas também de todo o país — se volta para o julgamento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. De sua atuação depende, em parte, a manutenção de aspirações de justiça social, cognitiva e histórica ou a manutenção das permanentes frustrações destas comunidades, vindas justamente dos Poderes Públicos.
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*César Augusto Baldi é mestre em Direito pela ULBRA-RS, doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha) e servidor do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Porto Alegre) desde 1989.
A matéria acima havia sido publicada dia 23, com o título A vigília das comunidades quilombolas do Brasil.
O judiciário,nestas questões(e em outras tb)que envolvem conflitos de terra,sempre atuou com o cú na mão ou por dinheiro,salvo raríssimas casos.Não me venham com jurisprudências tendenciosas como sempre.Só na borduna,no trabuco,na porrada mesmo,que os conflitos foram apaziguados.Estas pessoas que a séculos usam da violência para defender seus equivocados pontos de vistas,agora,com qualquer tranco,qualquer chega pra lá,berram mais que porco na ponta da faca.E o judiciário que não aja com o pouco de decência que ainda lhe resta,pra ver se o pote não vai quebrar!!!