Patrícia Bonilha, de Brasília, Cimi
No último dia 20, por volta das 17h, um segurança da estância turística Águas do Prado, localizado no município de Vicente Dutra (RS), fez seis disparos com arma de fogo contra um carro com indígenas Kaingang após exigir que eles se retirassem da área onde costumam vender artesanato e jogar futebol. Apesar do empreendimento ter sido construído dentro da Terra Indígena Rio dos Índios, demarcado desde 2004 com 715 hectares como território tradicional, e os indígenas, incluindo várias crianças, estarem saindo do local de modo pacífico, o segurança tentou dar uma facada em um dos indígenas. Na sequência, fez os disparos que, felizmente, não acertaram ninguém.
Segundo o vice-cacique Luiz Salvador, o segurança, conhecido como Palmeira, age como um jagunço do empreendimento, tem várias passagens pela polícia e há cerca de quatro anos vem constantemente ameaçando os indígenas, muitas vezes, com armas em punho. “Nós estávamos sendo proibidos de buscar nossa lenha, nosso cipó, de ir e vir, dentro da nossa própria terra. Já tínhamos registrado queixas sobre isso na delegacia de polícia”, afirma Salvador.
Após este atentado, e motivados pelo cansaço de esperar pacificamente pela finalização do processo demarcatório de suas terras, os indígenas renderam o segurança, que foi encaminhado ao hospital com ferimentos, e ocuparam a estância térmica-turística. Segundo os indígenas, a estância dificulta a homologação e desintrusão da TI Rio dos Índios, já que os pequenos agricultores que ocupam a área afirmaram que aceitam imediatamente a indenização das terras e das benfeitorias para deixarem as terras indígenas.
De acordo com Salvador, os oito hectares ocupados pela estância foram doados pelo município ao empreendimento que os loteou e vendeu. “Foram títulos de má-fé que permitiram a construção das 118 casas de veraneio de gente rica, que não mora aqui. Eles montaram a Associação Águas do Prado para dificultar a garantia dos nossos direitos constitucionais”, explica o vice-cacique.
Em uma reunião realizada na última sexta-feira (22), em Passo Fundo, em que estavam presentes os indígenas, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Ministério Público Federal (MPF), foi feito um acordo em que os governos estadual e federal se comprometeram a fazer a indenização de vinte agricultores até o mês de março, dando um primeiro passo no processo de desintrusão da área, onde vivem 48 famílias indígenas.
Mesmo assim, segundo Salvador, o clima continua tenso e as lideranças estão recebendo constantes ameaças por telefone e internet. “De qualquer modo, vamos permanecer dentro da nossa terra até o fim do processo. Ela já está demarcada e nós cansamos de esperar pacificamente”, conclui Salvador.
Leia abaixo a carta do Cimi, Gapin e Comin, que contextualiza os fatos e manifesta apoio aos Kaingang da TI Rio dos Índios:
Kaingang da TI Rio dos Índios reagem à política anti-indígena
Em março de 1992 a comunidade Kaingang fez o primeiro pedido formal para a regularização e o reconhecimento do território de ocupação tradicional em Vicente Dutra (RS). Porém, a Fundação Nacional do Índio (Funai) constituiu o Grupo de Trabalho (GT) para identificação e delimitação da Terra Kaingang de Rio dos Índios somente no ano de 2000. No mês de comemoração ao Dia do Índio, de 2003, foi publicado o Relatório Circunstanciado e no final de 2004 foi emitida a Portaria Declaratória pelo Ministro da Justiça Márcio Thomas Bastos, que definiu a área de 715 hectares como de ocupação tradicional Kaingang. A Portaria Declaratória da Terra Indígena (TI) de Rio dos Índios foi a única publicada no Rio Grande do Sul, durante o governo Lula. As conquistas e expectativas eram motivos de alegria, mas desde então sobram razões para a indignação e a dor.
Neste período, se acirrou uma disputa ferrenha, envolvendo pequenos agricultores, administração pública municipal e empreendedores do turismo, já que a estância hidromineral Águas do Prado foi construída dentro da terra demarcada e, segundo os relatos do ‘troncos velhos Kaingang’, este empreendimento teve início com a retirada das famílias Kaingang do local. É devido a esta estância que se tem gerado mais tensão e ameaças contra a comunidade indígena. Em uma ocasião, um não índio teria dito: “a terra indígena nunca vai sair, vamos destruir, arrancar e carregar casas e farmácia de vocês”. Em épocas de veraneio, os Kaingang circulam pelo empreendimento para vender artesanato. Numa destas ocasiões, mulheres e crianças indígenas foram impedidas de passar novamente por ali e foram violentamente ameaçadas: “se voltarem a vender artesanato no local vamos cortar o pescoço de vocês”. O mesmo autor desta ameaça prometeu violentar sexualmente uma jovem indígena. Mulheres e crianças que procuravam lenha, fora do restrito espaço onde se localiza o acampamento, foram duramente ameaçadas por um agricultor ocupante, o qual, portando uma espingarda, ameaçou: “se voltar para pegar mais lenha vão levar um tiro na cabeça”.
A comunidade indígena reage a tais ameaças com resistência e estratégias de luta que zelam pelo clima amistoso entre as partes envolvidas. A tentativa de diálogo com as famílias agricultoras tem sido outra estratégia importante na luta pela continuidade do processo demarcatório. Na busca de garantir seus direitos, as famílias agricultoras solicitam o pagamento da terra junto com o das benfeitorias, mas o estado do Rio Grande do Sul não se comprometeu no atendimento do direito, tampouco o Incra, não se responsabilizando pelo reassentamento ou indenização das terras às famílias agricultoras ocupantes de boa-fé da área declarada.
A comunidade indígena vinha respeitando isso e dialogando com os posseiros. Porém, no último dia 20 de novembro, um funcionário do referido empreendimento hidromineral atacou um veículo ocupado por Kaingang, realizando disparos com arma de fogo contra os indígenas. O grupo reagiu e a comunidade se organizou, ocupando o empreendimento, uma vez que este integra os 715 ha declarados como de ocupação tradicional Kaingang.
A TI Rio dos Índios, reconhecida e declarada por portaria em 2004, e com levantamento fundiário concluído em 2011, aguarda que os órgãos responsáveis (estaduais e federal) se empenhem na desintrusão e que a presidente Dilma Roussef homologue em definitivo o território como de ocupação tradicional Kaingang.
A comunidade Kaingang da TI Rio dos Índios almeja o fim dos conflitos, que são promovidos e/ou incentivados por organizações sindicais mal intencionadas, políticos aproveitadores, advogados interesseiros e pelo próprio governador Tarso Genro, que tem adiado o andamento do processo e protelado a indenização das famílias agricultoras e ocupantes de boa-fé. Ao não se resolver a questão, não concluindo o processo demarcatório, tanto as famílias Kaingang como as famílias agricultoras sofrem com a insegurança e ficam à mercê de interesses escusos (por vezes com viés econômico), politiqueiros e eleitorais, evidenciados pela falta de disposição dos responsáveis em cumprir os preceitos legais e de direitos das partes, protelando a resolução do caso e potencializando conflitos.
A comunidade Kaingang de Rio dos Índios está organizada e mobilizada e articulada com outras comunidades indígenas, a fim de resistir e permanecer na posse de seu território de ocupação tradicional e de direito (demarcado de acordo ao Decreto 1.775/96).
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Conselho de Missão entre Indígenas (Comin) e o Grupo de Apoio aos Povos Indígenas (Gapin) reafirmam seu incondicional e irrestrito apoio à luta Kaingang e na defesa dos direitos humanos à terra/território das comunidades indígenas. E, junto com a comunidade Kaingang de Rio dos Índios, responsabilizam os órgãos governamentais (estaduais e federal) nas consequências dos possíveis conflitos que possam vitimar famílias Kaingang e agricultoras.
Conselho Indigenista Missionário (Cimi-Sul)
Conselho de Missão entre Indíos (Comin)
Grupo de Apoio aos Povos Indígenas (Gapin)
Novembro de 2013
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