G1 conversou com um dos criadores do Instituto Mídia Étnica em Salvador. ‘O Brasil tem uma das formas de racismo mais sofisticado do mundo’, diz
Rafaela Ribeiro – Do G1 BA
“Nosso trabalho consiste em treinar jovens de comunidades para que eles possam usar estrategicamente a comunicação para reverter esse jogo excludente”. Esta é a tônica do trabalho do Instituto Mídia Étnica, que entre outras ações, mantém na Bahia o site Correio Nagô, veículo voltado para dar voz à comunidade negra.
O G1 conversou com um dos fundadores do projeto, Paulo Rogério Nunes, 32 anos, que saiu do subúrbio de Salvador aos 19 anos e hoje lida com jovens de comunidades para que eles estejam inseridos no contexto social.
Entre as ações mais interessantes do Instituto está a adaptação da tecnologia chamada VOJO, que permite a qualquer pessoa atualizar um blog sem precisar ter um computador, tablet ou até mesmo smartphone. “Com essa tecnologia, até mesmo de um telefone público, você pode mandar conteúdo para a internet”, detalha.
“É preciso garantir que mais jovens participem da internet, e não só como consumidores da informação, mas também como produtores”, pontua. Na opinião dele, a experiência internacional foi importante para enxergar que o Brasil tem uma forma de racismo “sofisticado”. “Recentemente, concluí um curso na Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, onde estudei Jornalismo e Novas Mídias em um programa da Fulbright. Lá, tive a oportunidade de conhecer os principais veículos de comunicação do mundo, como o The New York Times, Washington Post, Bloomberg e rede ABC. Além disso, tive a oportunidade de estagiar no Media Lab do Massachusetts Institute of Technology (MIT), uma das mais importantes universidades de tecnologia do mundo”, conta.
Como se interessou por questões sociais voltadas para o povo negro? Essa escolha se confunde com sua história pessoal?
Eu nasci no Subúrbio Ferroviário de Salvador, em um bairro chamado Alto da Terezinha, onde morei até completar uns 19 anos. O subúrbio de Salvador é um local muito bonito, com muitas belezas naturais incríveis, porém é um espaço historicamente negligenciado pelo poder público e onde a falta de oportunidades é uma regra, como em outras periferias do Brasil. Eu comecei a despertar para uma consciência racial quando trabalhava com manutenção de computadores e, ao visitar os bairros ricos da cidade, percebia que tanto o padrão de vida, a infraestrutura da localidade e a cor das pessoas mudava radicalmente conforme eu ia mudando de local.
Um outro fato que me fez despertar para a militância social foi ouvir as letras dos Racionais MCs que me fizeram conhecer, pela primeira vez, a história de ícones como Malcolm X, Zumbi, Spike Lee etc. Tempos depois, já na universidade, conheci o Movimento Negro e fiz um curso de liderança jovem no Instituto Steve Biko, o que mudou radicalmente a minha forma de ver o mundo e me deu referências políticas para o trabalho que desenvolvo hoje. De lá para cá, essa luta pelo fim da opressão racial tornou-se parte essencial da minha vida.
Qual a sua formação acadêmica e trajetória dentro da inclusão social?
Eu estudei Comunicação Social na Universidade Católica do Salvador, depois fiz uma pós graduação em Política e Estratégia e recentemente concluí um curso na Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, onde estudei Jornalismo e Novas Mídias em um programa da Fulbright. Lá, nos Estados Unidos, tive a oportunidade de conhecer os principais veículos de comunicação do mundo, como o The New York Times, Washington Post, Bloomberg e rede ABC. Além disso, tive a oportunidade de estagiar no Media Lab do Massachusetts Institute of Technology (MIT), uma das mais importantes universidades de tecnologia do mundo.
No campo social, o trabalho que temos desenvolvido desde 2005, com o Instituto Mídia Étnica, já ganhou reconhecimento nacional e internacional com os prêmios Camélia da Liberdade, que ganhamos no ano passado, ao lado de grandes instituições. O outro foi o da Ashoka, que é uma rede global que escolhe empreendedores sociais para apoio. A organização também tem parcerias com organizações como a ONU por meio do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) para a qual prestamos consultoria.
De onde surgiu o Instituto Mídia Étnica e o site Correio Nagô?
O Instituto Mídia Étnica é uma organização criada em 2005 por, na época, estudantes de comunicação que compreenderam a necessidade de realizar projetos para garantir a diversidade étnico-racial na mídia. Sou um dos cofundadores, junto com mais alguns colegas das áreas do jornalismo, publicidade e cinema. Nesses oito anos, já atuamos em parceria com universidades, organizações comunitárias, grupos internacionais e movimentos sociais. Em 2008, lançamos o Correio Nagô, que é uma plataforma digital composta por um portal de notícias e rede social colaborativa onde compartilhamos notícias relacionadas a diversidade e direitos humanos, como foco na comunidade negra. Somos hoje a maior plataforma desse gênero no Norte-Nordeste.
Como é o trabalho do Instituto?
Nosso trabalho consiste em treinar jovens de comunidades para que eles possam usar estrategicamente a comunicação para reverter esse jogo excludente. Fazemos treinamentos em áreas como as redes sociais, o audiovisual e o jornalismo comunitário. Os resultados são muito positivos. Em primeiro lugar, pois há um empatia muito grande por nós termos histórias de vidas muito similares a deles e pelo fato de a comunicação ser um campo que atrai naturalmente o jovem. Recentemente, uma pesquisa do Data Favela apontou que 78% dos jovens dessas comunidades possuem algum tipo de acesso à internet e que os smartphones estão no topo da lista de bens desejados por moradores de periferia. É preciso garantir que mais jovens participem da internet, e não só como consumidores da informação, mas também como produtores.
E a tecnologia VOJO, como funciona?
Quando fiz o estágio no MIT, no Center for Civic Media, um espaço dedicado a pensar soluções de mídias comunitárias, fiquei muito impressionado com uma tecnologia chamada VOJO que permite a qualquer pessoa atualizar um blog sem precisar ter um computador, tablet ou até mesmo smartphone. Com essa tecnologia, até mesmo de um telefone público, você pode mandar conteúdo para a internet. Daí, no meu retorno em agosto de 2012, resolvi traduzir a ferramenta para português e criar um projeto piloto para testar o uso dela no contexto brasileiro. Foi daí que fizemos uma parceria com as comunidades quilombolas da Ilha de Maré e realizamos o projeto VOJO Brasil: ampliando vozes quilombolas por meio do celular.
O projeto foi muito bem recebido pelos jovens da comunidade e foi a primeira experiência com essa tecnologia na América do Sul. Agora, estamos batalhando para expandir esses treinamentos para outras partes do Brasil, em especial para áreas remotas onde não há sinal de internet. Essa é uma ferramenta muito útil para comunidades indígenas, quilombolas, assentamentos rurais etc. Com ela, a comunidade não precisa de mediação de políticos, ou da própria imprensa tradicional, para fazer com que sua voz seja ouvida. É talvez o projeto no mundo que mais vai à base da pirâmide social visando a democratização da comunicação. Pois qualquer pessoal sem nenhum dispositivo de computação pode mandar arquivos de áudio, fotos e até vídeo para a internet.
Por que escolheu trabalhar com a comunicação como ponte para a inclusão social?
A comunicação é uma área estratégica para a transformação social. Para nós, a comunicação é um direito humano fundamental. O exercício desse direito pode empoderar pessoas e fazer com que elas apresentem seus pontos de vista para a sociedade. Infelizmente, em geral, a narrativa dos meios de comunicação em relação à população negra ainda é bastante equivocada, colocando, quase sempre, os jovens negros como o problema da sociedade, quando na verdade, eles que são as verdadeiras vítimas de uma engrenagem social que não dá oportunidades e que vem matando essa juventude sistematicamente.
Por ano, no Brasil, o número de jovens negros mortos por armas de fogo já passa o de guerras civis oficiais. De 2004 a 2007, foram quase 150 mil mortes contabilizadas. É como se seis aviões cheios de jovens negros caíssem todos os anos e, infelizmente, a sociedade faz de conta que o problema não existe. Além disso, os programas sensacionalistas apenas mostram a imagem do jovem negro como um potencial criminoso, reforçando estereótipos. Infelizmente, os exemplos positivos são negados ou invisibilizados. É preciso um debate sério entre os meios de comunicação e a sociedade sobre esse assunto.
Quais são os resultados do projeto que destacaria até agora?
Os jovens estão cobrindo eventos importantes para a comunidade e dando visibilidade a suas pautas que são divulgadas pelo nosso site e em páginas parceiras. Os jovens se apropriaram da ideia da comunicação como um direito fundamental e já participaram em São Paulo de uma articulação ligada a uma plataforma digital chamada “Participatório”, que é uma ferramenta de escuta das demandas juvenis. Os jovens estão buscando formas de replicar nas suas comunidades e serão formadores em outras comunidades em Salvador e fora da Bahia.
Como você enxerga o atual contexto do negro na Bahia?
Se por um lado, vemos avanços em relação à conquista de direitos como cotas na universidades e alguns marcos jurídicos na promoção da equidade, ainda falta muito para termos uma igualdade de fato entre negros e brancos no Brasil. As estatísticas da violência são uma prova disso. O jovem negro é alvo principal da violência no Brasil e esse genocídio só vem piorando nos últimos anos. Essa “sangria demográfica” é bastante nociva para toda a sociedade, e claro, em particular, para as famílias que perdem seus filhos na idade onde estes jovens poderiam contribuir bastante. Precisamos melhorar nossa educação de base, investir nas comunidades e, claro, punir os agentes do estado que cometem esses crimes. Vivemos em um país dividido, em uma guerra civil não declarada, mas visível. Além disso, a população negra ainda é minoria nos espaços de poder. Segundo o Instituto Ethos, menos de 1% das mulheres negras ocupa cargo de chefia nas 500 maiores empresas do Brasil. Somos pouco representados na economia, na política e na mídia. Como podemos dizer que somos uma democracia plena se as barreiras sociais continuam para os descendentes de africanos no Brasil? Só teremos uma sociedade verdadeiramente plural com a inclusão desse segmento importante da sociedade brasileira.
Como as suas experiências no exterior mudaram o sua perspectiva sobre o contexto social dos negros em Salvador, na Bahia?
Essa experiência nos Estados Unidos e as minhas visitas de trabalho a outros países do mundo só fazem comprovar a tese que o Brasil tem uma das formas de racismo mais “sofisticados” do mundo. Na maioria dos chamados países multiculturais, a diversidade é o valor importante e até mesmo as empresas buscam, ao menos no discurso, atender certos critérios, como a promoção da oportunidades iguais para todas as pessoas. Aqui, ainda é forte a ideia que somos uma “democracia racial” e que não existem conflitos dessa natureza. O que é engraçado é que a elite dirigente brasileira conhece muito bem a realidade desses países que visita e se beneficiam, por vezes com cotas, por serem de origem sulamericana, mas fazem o máximo para não permitir o avanço do tema da igualdade racial no Brasil. Nos EUA, por exemplo, conheci muitos diplomatas, médicos, reitores e até donos de bancos jovens e negros, uma realidade bastante diferente da que vivemos no Brasil. Mas, ainda há quem acredite que o racismo brasileiro é mais brando, ou que não existe. Fiquei feliz em saber do lançamento, nessa semana, do Programa Abdias do Nascimento do MEC, que vai possibilitar o envio de estudantes negros para fazerem graduação no exterior. Acredito que isso terá um impacto positivo na sociedade brasileira em 15, 20 anos.
Como funciona, na prática, a mudança de comportamento das pessoas atingidas pela disseminação da informação por meio dos meios de comunicação específicos sobre o tema?
Na era da informação, mais do que nunca, conhecimento é poder. E é por isso que nossa organização acredita que é preciso se apropriar das ferramentas de comunicação para que essa produção de informação seja mais justa. Por muito tempo, ficamos reféns de apenas um modelo de comunicação onde poucos falavam e muitos ouviam. Hoje, vivemos em um momento de mudança de paradigma e isso possibilita uma oportunidade única e história para a comunidade afro-brasileira. Na prática, significa dizer que com a internet e os meios digitais, as vozes secularmente oprimidas podem finalmente serem ouvidas. É claro que isso não significa que isso sempre vai ocorrer, pois há muitas tentativas conservadoras de mudar a internet que conhecemos hoje, mas creio que nossa geração não pode abrir mão desse que é um dos nossos maiores patrimônios. A informação livre cria a possibilidade de que várias narrativas antes silenciadas pela lógica tradicional de comunicação tenha visibilidade e o impacto é bastante positivo, possibilitando várias mudanças sociais.