Quilombo sobrevive em meio a uma das áreas mais caras do Rio

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 Fotos: Mauro Pimentel / Terra

Por Paula Bianchi, em Notícias Terra

O número 250 da rua Sacopã, no bairro Lagoa, uma das regiões mais valorizadas do Rio de Janeiro, contrasta com a opulência dos vizinhos –  um sem fim de condomínios e casas luxuosas. O portão simples, cercado de árvores, dá acesso a um terreno de 18 mil metros quadrados de área verde preservada com vista privilegiada para o Cristo e para a Lagoa Rodrigo de Freitas. Lá, sete famílias de descendentes de escravos lutam desde os anos 70 pelo direito de permanecer no local, avaliado em R$ 160 milhões.

Reconhecidos pela Fundação Palmares desde 2004, tornando-se o primeiro quilombo urbano oficial do País, os 26 moradores que formam a família Pinto aguardam a titulação do local como área quilombola pela União para encerrar a série de conflitos que enfrentam desde que se instalaram na região, em meados de 1940.

Quilombolas são descendentes de africanos escravizados que mantêm tradições culturais, de subsistência e religiosas ao longo dos séculos. Até o começo de outubro, a Palmares, fundação criada pelo governo federal para promover e preservar a cultura afro-brasileira, reconheceu 2.408 comunidades quilombolas no País.

Enquanto a titulação não sai, os Pinto pedem junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) o reconhecimento da propriedade da área via usucapião, negado em segunda instância em 2005. A família enfrenta ainda a pressão de imobiliárias, que tentam com frequência “comprar” o terreno, dos vizinhos, que entraram na Justiça por meio da associação dos moradores acusando o quilombo de dano ao meio ambiente, e da prefeitura, que com frequência aplica multas à comunidade.

“Essa é uma resistência de mais de meio século, é muito tortuoso”, define o patriarca da família, Luis Sacopã, 71 anos, que tomou emprestado o sobrenome Sacopã, mais sonoro que o humilde Pinto, quando deu os primeiros passos na carreira de sambista.

Reconhecimento quilombola

O samba, por sinal, foi o responsável pelo reconhecimento da família como comunidade quilombola. Luis conta que a mãe, dona Eva, era uma exímia cantora e compositora. Acompanhada do marido, Manoel Pinto, que tocava cavaquinho, ela começou uma roda de samba e pagode que atravessou décadas como referência do gênero na zona sul. “Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, Dona Ivone Lara, Arlindo Cruz… Todo mundo tocava aqui”, orgulha-se.

O pagode do Sacopã, como ficou conhecido, ganhou força, sendo por muito tempo a principal fonte de renda da família, descendente de escravos que fugiram de Macaé no final do século XIX, instalando-se no vizinho morro dos Cabritos. Virou até bloco de Carnaval – a Rola Preguiçosa -, que desce a rua em toda festa do Momo desde 1993.

“Eles foram muito perspicazes no sentido de construir alianças… A própria visibilidade que o quilombo adquiriu através do samba atualizou a sua relação com a cidade”, comenta o antropólogo Fábio Reis Mota, da Universidade Federal Fluminense.

O que legitima os Pinto como quilombolas, explica Mota, não é a herança de luta e fuga, como se costuma associar a esses grupos, mas a organização familiar unida à tradição do samba. “Eles criaram a roda quando o samba e o pagode tinham uma entrada muito restrita na zona sul, o que foi fundamental para a disseminação do gênero na cidade”, avalia.

Preconceito

Além da especulação imobiliária, que bate à porta ora em forma de um corretor interessado em comprar o terreno, ora como uma ação judicial por parte dos vizinhos, é consenso que o racismo influi bastante na perseguição sofrida pela comunidade.

Alexandro Reis, diretor da Fundação Palmares, diz que boa parte das comunidades quilombolas do país sofre com o preconceito, em especial dos vizinhos, e o que o Sacopã não foge à regra. “É uma comunidade quilombola estabelecida em uma região muito rica do Rio de Janeiro, há muito racismo envolvido”, afirma.

O imbróglio na Justiça e com os vizinhos terminou até com o pagode e as feijoadas no local, proibidas sob a alegação de que não é permitido realizar atividades comerciais na área. Ao todo, contabiliza Luis, foram quatro ordens de despejo – uma privada, uma estadual e duas municipais, a última na segunda gestão de Cesar Maia (2001-2009).

Nem mesmo a lei aprovada pela Câmara de Vereadores do Rio tornando o Sacopã uma “área de especial interesse cultural”, medida inicialmente vetada pelo prefeito Eduardo Paes, significou a volta das feijoadas e sambas do 250. “A gente sofre muito. Uma vez acorrentaram o portão por 10 dias. Em pleno século 21, você volta aos tempos da escravidão, passa a corrente no portão”, diz Luis ao lembrar a tarde de sexta-feira, em julho de 2011, em que oficiais de Justiça lacraram a entrada de carros na propriedade a fim de impedir a realização de festas com venda de bebidas e alimentos.

Também é comum que a comunidade receba multas da prefeitura sem muita explicação. “A gente recebe multas aqui quase de três em três meses. A última foi um auto de infração de R$ 7 mil que nem dizia o porquê. As multas vem com um “Sacopã, 250 (não oficial)“, mas por que é oficial quando temos de pagar o IPTU?”, afirma Luis, sobre o endereço escrito no envelope.

Apesar de morar no número 250 desde meados de 1940, a família Pinto não detém a propriedade do local. A ação de usucapião que corre no STJ segue, paralelamente, ao lento processo de titulação quilombola – depois dos estudos de reconhecimento da comunidade, é preciso que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) faça a desapropriação.

A área ocupada pelo quilombo, de 18 mil metros quadrados, abrange alguns condomínios e até um parque municipal, criado em 2000 pelo governo do ex-prefeito Luiz Paulo Conde. No momento, o processo encontra-se na fase de questionamento por parte dos vizinhos, da União e do Estado. Uma vez titulado, o terreno do quilombo passa a ser de usufruto da família, o que obriga a sua preservação e impede a venda.

Ana Simas, que chegou a realizar a sua cerimônia de casamento no Sacopã, e hoje preside da Associação de Moradores da Fonte da Saudade, grupo à frente de uma ação civil pública contra a família Pinto por falta de preservação ambiental, nega as acusações de preconceito dos vizinhos.

Segunda ela, há mais de 450 apartamentos e 23 condomínios notificados pelo Incra por conta da ação de titulação de um quilombo que não existe. “Não tenho nada de pessoal contra eles, não é racismo, é uma questão de integridade”, diz. “Como eu posso falar em quilombo se essa família foi para lá em 1930, 1940?”, questiona.

Luis rebate a acusação de desmatamento apontando para o terreno, repleto de árvores, em que macaquinhos teimam em pular de um galho a outro “Não fosse a gente aqui já não teria área verde nenhuma. É só olhar ao redor. Quando eu era criança, minha mãe conseguia chamar a gente para o almoço daqui e ouvíamos lá na lagoa, agora só restam prédios”, afirma. Ele diz que não é possível nem comprar material para fazer melhorias nas sete pequenas casas já existentes sem receber uma notificação da Justiça motivada pela denúncia de vizinhos.

Apesar de ver o Sacopã em uma posição confortável frente a outras comunidades quilombolas, já que tanto a titulação quanto o processo de usucapião já estão encaminhados – “ou eles ganham o terreno de um jeito ou de outro” -, a defensora pública Carla Beatriz Lunes Maia, que defende a família, admite que a localização em uma área privilegiada dificulta a situação. “Tem muitos interesses econômicos envolvidos ali. A prefeitura está sempre cobrando alguma coisa, sem muita justificativa.”

Luis, que recebeu do prefeito Paes a promessa de que até o fim do ano o terreno seria titulado em nome do quilombo pela prefeitura, lembra o caso da vizinha favela da Catacumba, na mesma região. A comunidade, em que muitos escravos fugidos se estabeleceram quando chegaram ao Rio,  foi removida inteiramente pela secretária de Habitação do governo Carlos Lacerda, Sandra Cavalcanti, que retirou as favelas da região em troca de pequenas indenizações ou casas no distante bairro rural de Santa Cruz, a mais de 60 quilômetros do local.

De todos os descendentes de escravos que foram para a área, restou apenas o Sacopã. “Falavam que não se podia construir ali porque é área de risco, mas no final a lagoa virou área de rico”, afirma Luis, na esperança de ainda ver a área titulada como comunidade quilombola para seus filhos, netos e bisnetos.

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