“Um dia após o anúncio do início das doações de cabeças de gado para a realização do leilão que pretende arrecadar fundos para a contratação de milícias para promover o genocídio indígena no MS (como se a contratação de empresas de capangas já não fosse uma prática arraigada entre os autoproclamados produtores deste Estado), os latifundiários decidiram começar a dar provas de seu poder de fogo e de sua certeza de impunidade.
Enquanto alguns deles se reuniam com o Governador André Puccinelli e demais representantes políticos do agronegócio, para acordar os detalhes da viagem que farão a Brasília, no próximo dia 21, com o objetivo de pressionar o Governo Federal em relação à questão fundiária, outros, acompanhados por centenas de pequenos produtores, oriundos em sua maioria do sul do Estado – cooptados por alienação ou por interesses escusos – ocuparam o prédio da Coordenação Regional da FUNAI na capital e fecharam a Rua Maracaju, onde se localiza a Fundação, por aproximadamente quatro horas.
Os servidores trabalhavam, por volta das 08:30, quando visualizaram o início da aglomeração em frente ao prédio. Antes que tivessem tempo de ao menos entender o que se passava, um grupo de dezenas de fazendeiros [sic] tomou a recepção, na tentativa de forçar a entrada. Os funcionários passaram, então, a ouvir constantes ataques verbais e provocações que se dirigiam tanto ao Órgão, quanto insultos pessoais e de baixo calão. A situação se agravou no momento em que se propôs ao grupo que dessem prosseguimento à manifestação na rua, mas desocupassem a portaria. Os ânimos se exaltaram e, com gritos de “vamos invadir igual os índios fazem nas nossas terras”, empurrando quem estivesse no caminho, ocuparam todo o corredor de entrada do térreo.
Sobretudo a partir desse momento, ficou evidente que os pequenos produtores estavam sendo utilizados como mera massa de manobra pelos latifundiários. O discurso previamente combinado se pautava pela suposta defesa dos direitos daqueles frente aos “abusos cometidos pela FUNAI e pelas ONGs”, que, conforme os proprietários do Estado seriam as responsáveis pelas retomadas promovidas legítima e autonomamente pelos povos indígenas.
O fato que esses pequenos produtores, chacareiros e sitiantes parecem ignorar é que o agronegócio monocultor, exportador, concentrador de terras e renda, financiado pelas transnacionais fabricantes de agrotóxicos, que vem há décadas promovendo o sistemático assassinato de lideranças indígenas e de qualquer um que se oponha aos seus interesses, em sua infinita necessidade de acumulação de capitais, é também inimigo da pequena propriedade rural.
Estes homens e mulheres, verdadeiros trabalhadores do campo – assim como assentados, indígenas, quilombolas e ribeirinhos – que hoje se posicionaram ao lado dos latifundiários, correm o grande risco de se verem igualmente engolidos pelo latifúndio, restando-lhes apenas a alternativa de migrarem para as periferias das cidades ou se transformarem em sem-terras. Daí, sim, o Brasil verá a sua classe produtora arruinada, pois não é à base dos grãos e das commodities exportadas pelo agronegócio que a nação se alimenta, mas com os produtos semeados nas pequenas e médias propriedades.
As agressões não pararam: servidores, indígenas e não indígenas, indignados com as falas falaciosas e ofensivas contra os povos originários, tentaram em vão argumentar razoavelmente, sendo quase agredidos fisicamente; um indígena Terena que prestava declarações a uma equipe de televisão por pouco não foi atingido por uma garrafa térmica manejada por um fazendeiro de Laguna Caarapã, na intenção de impedir que a entrevista ocorresse; o mesmo fazendeiro, ao ser interpelado verbalmente por um servidor por conta de sua atitude violenta, tentou quebrar o equipamento de vídeo que este portava. Sucederam-se ainda diversos discursos de incitação a ações de retaliação aos indígenas e aos defensores de seus direitos, sempre ao som do Hino Nacional, repetido à exaustão, como manda a etiqueta de qualquer manifestação fascista que se preze.
Merece destaque também o comportamento das forças policiais durante o ocorrido. Menos de dez agentes da Polícia Militar foram deslocados para garantir a integridade dos servidores e se portaram de maneira bem distinta daquela a que a sociedade está acostumada quando o assunto é coibir manifestações populares: nada de Tropa de Choque, nada da truculência, balas de borracha ou spray de pimenta. O que se viu foi uma atitude de quase camaradagem com os invasores (permito-me aqui lançar mão do jargão dos donos do poder) ou até mesmo um certo tom de respeito silencioso aos nobres donos do Estado.
Resta questionar qual teria sido a atitude dos mantenedores da Lei e da Ordem se, no lugar de um protesto organizado por milionários, tivéssemos uma manifestação de indígenas, sem-terras, ou quaisquer outros grupos que não detenham o poder econômico. Os Amarildos e Oziéis, que insistem em cometer o hediondo crime de nascerem pretos, pobres e índios nesta democracia de gangsters, poderiam dar resposta a essa indagação, caso já não estivessem eternamente silenciados.
A “manifestação pacífica”, conforme a qualificou a mesma imprensa que costuma chamar de vândalos e baderneiros os trabalhadores e estudantes que saem às ruas em oposição às verdadeiras injustiças sociais, teve fim por volta das 13:00h, com a desocupação do prédio e o final antecipado do expediente para os servidores.
O recado dado nessa manhã de ignorância, bestialidade e covardia foi bastante claro: eles sabem muito bem que são os donos das terras, do dinheiro, da mídia e de boa parte do Governo – que, só neste ano, destinou 136 (cento e trinta e seis) bilhões de Reais para engordar os bolsos do latifúndio, via Plano Safra, enquanto deixa a FUNAI à míngua com orçamentos cada vez mais diminutos – e sua capenga Justiça, e não descansarão até que todo o país se transforme em terra arrasada por sua monocultura devastadora.
Aos que se opõem a tal plano, restam duas opções: continuar com seus discursos de panos-quentes, concordando com a estúpida política de conciliação de classes adotada pelo Governo burguês, ou assumir a tarefa da resistência e da luta frente às violações praticadas em nome do desenvolvimentismo capitalista.
Campo Grande-MS, 19 de novembro de 2013.
Funcionário da Funai, prefere não se identificar.”
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Enviada para Combate ao Racismo Ambiental por Flávio Bittencourt.
não entendi nada.
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Excelente manifesto! Não nos calaremos! Não nos calarão!