Terras Quilombolas: demora no processo de regularização se repete por todo o Brasil

Moradias precárias e dificuldade de subsistência são problemas recorrentes em comunidades quilombolas. Foto: MPF/BA
Moradias precárias e dificuldade de subsistência são problemas recorrentes em comunidades quilombolas. Foto: MPF/BA

Confira as dificuldades enfrentadas por diversas comunidades e a atuação do MPF em favor delas

Procuradoria Geral da República

A Constituição de 1988 assegurou, no artigo 68 dos Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que “aos remanescentes das comunidades de quilombos é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”. Atualmente, há 2.007 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares. Desse número, cerca de 1.300 já têm processo aberto no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável pelo processo de regularização. No entanto, até maio de 2013, apenas 139 títulos de propriedade coletiva haviam sido emitidos.

Como se verá nos próximos parágrafos, o problema não é isolado. Ao contrário, se repete no país inteiro. Em geral, a emperra em algumas das etapas conduzidas pelo Incra: identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação ou titulação das terras (confira aqui o passo a passo). Também há casos em que produtores rurais ingressam com ações judiciais para impedir que o processo se complete. Os resultados mais visíveis são dificuldade de subsistência, violência e preconceito.

Na Bahia, a comunidade quilombola Rio dos Macacos, existente há mais de 200 anos, enfrenta um conflito com a Marinha do Brasil há cerca de 42 anos, quando o local onde a comunidade está instalada foi escolhido para a construção da Base Naval de Aratu. Desde então, os integrantes da comunidade, que hoje conta com mais de 300 pessoas, alegam ser alvo de ações violentas, praticadas por oficiais da Marinha, na intenção de expulsar cerca de 46 famílias residentes no local.

O conflito ganhou ainda mais força após a decisão da Justiça Federal na Bahia, que determinou a desocupação de área situada na Base Naval de Aratu pela comunidade quilombola. Em maio deste ano, o MPF ajuizou agravo de instrumento perante o Tribunal Regional Federal da Primeira Região, contra a decisão.
Em 2011, o MPF já havia proposto ação civil pública pedindo que a Justiça determinasse a permanência da comunidade no local, mas os pedidos não foram acatados. Em junho de 2012 o órgão expediu uma recomendação ao Comando do 2º Distrito Naval da Marinha do Brasil, visando a coibição de prática de atos de constrangimento físico e moral contra os quilombolas.

A ação mais recente do MPF foi uma recomendação expedida em 30 de outubro de 2013 para que o Incra adote as medidas efetivas para a publicação do relatório técnico de identificação e demarcação (RTID) da comunidade Rio dos Macacos. A recomendação visa a dar celeridade ao processo de reconhecimento da comunidade e é resultado de audiência pública realizada no dia 23 de outubro. De acordo com o procurador regional dos direitos do cidadão Leandro Nunes, não existem justificativas razoáveis para a morosidade na publicação do RTID, visto que já decorreram mais de de seis meses desde a data da elaboração do documento.

No norte do Espírito Santo, vivem as comunidades de São Domingos e de Santana. O processo de regularização de suas terras está no Incra desde 12 de abril de 2011 e pronto para julgamento de recurso desde 23 de janeiro de 2012. Mas depende da presidência do órgão.

Neste ano, o MPF manifestou-se contrário a uma ação judicial que pretende anular o procedimento de demarcação. A ação está sendo movida por 14 produtores rurais contra o Incra. Os autores afirmam que, além de não terem sido notificados do início dos trabalhos de identificação da área, os moradores da localidade de São Domingos e Santana não são remanescentes de quilombolas e que a região demarcada nunca foi um quilombo.

Para o MPF, não há qualquer nulidade a ser declarada, pois a fase do procedimento de demarcação contestada pelos autores tem como objetivo, justamente, identificar a terra, seus limites e seus habitantes. Além disso, os autores foram notificados posteriormente, na época da publicação do RTID.

O MPF também contesta a alegação dos produtores rurais de que a área nunca foi quilombo ou habitada por quilombolas. De acordo com o parecer do órgão, a definição de quilombolas como escravos fugidos e de quilombos como os espaços utilizados como esconderijo por esses escravos durante o período escravocrata não corresponde à compreensão mais adequada e recente das ciências humanas e jurídicas sobre o assunto. Pelo contrário, a correta conceituação de comunidades remanescentes de quilombos e das terras por elas ocupadas segue determinação do Decreto 4887/2003, segundo o qual são considerados remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnicos-raciais com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

No sul do Rio de Janeiro, o MPF em Resende recorreu de 12 sentenças da Justiça Federal que extinguiram ações de desapropriação ajuizadas pelo Incra em 2012 para garantir o direito à terra tradicional à comunidade quilombola de Santana, localizada no município de Quatis. Nas sentenças recorridas, a 1ª Vara Federal de Resende declarou inconstitucional o Decreto nº 4887-2003, que embasou as ações movidas pelo Incra para assegurar os direitos dos remanescentes de quilombos, extinguindo 12 processos de desapropriação que tramitavam na Justiça Federal em Resende.

Nos recursos apresentados pelas procuradoras da República Luciana Gadelha e Izabella Brant, o MPF também pede a imediata suspensão da decisão da Justiça Federal, com objetivo de assegurar o prosseguimento dos processos de desapropriação em primeira instância. “Acaso confirmadas as sentenças proferidas pelo magistrado, estarão sendo gravemente atingidos direitos fundamentais da referida comunidade, que depende de seu território não só para viver seus costumes e tradições, mas também para assegurar a sua própria subsistência e a continuidade do grupo. Da mesma forma, estarão sendo atingidos interesses coletivos de toda a população brasileira, diante da perda de valiosa parte do patrimônio cultural do país”, afirmam as procuradoras.

Entenda mais o caso

A Fundação Cultural Palmares emitiu em 2000 um título de Reconhecimento de Domínio em favor dos remanescentes do Quilombo de Santana. No entanto, o título não foi registrado no cartório de imóveis de Quatis, devido a dúvidas levantadas em virtude da existência de outros títulos registrados na área de terra do quilombo. De acordo com os processos movidos pelo Incra, o agravamento dos conflitos se deu por conta desses outros títulos de propriedade registrados na área, que é reconhecida como pertencente aos quilombolas de Santana. Para o MPF, a desapropriação e indenização a proprietários privados minimiza os conflitos.

A comunidade tem seu território em uma antiga fazenda movida pela mão de obra dos escravos pertencentes ao Barão Cajuru. Após o fim da escravidão, a família do Barão doou em 1903 um pedaço de terra para cada escravo. Os quilombolas de Santana apresentam em sua memória social tradições culturais, presentes no jongo e na prática da medicina alternativa. O jongo é uma dança ritualística que vem do tempo dos escravos, sendo realizada em torno de uma fogueira, seguida de cantorias e do som dos tambores. No território quilombola há ainda sítios históricos, que são reveladores da antiguidade de seu povoamento e da utilização da mão de obra escrava na fazenda que existia ali, a exemplo de ruínas do casarão, sede da fazenda do Barão do Cajuru e da capela de Santana, construída no ano de 1867.

Em vistoria realizada pelo MPF, constatou-se que a comunidade vive em situação de extrema pobreza, em moradias precárias, sem condições de subsistência. Diante da pressão pela ocupação da terra pelos fazendeiros vizinhos, restaram apenas pequenas áreas de relevo íngreme para a comunidade, não sendo adequadas à atividade agrícola, tradicionalmente desenvolvida. A nascente, que sempre foi utilizada para abastecimento de água da população, foi cercada por um dos fazendeiros vizinhos e, segundo relatado, sofre contaminação pela circulação de gado no seu entorno.

No Rio Grande do Sul, algumas comunidades, ainda que próximas à titulação, enfrentam grandes dificuldades para acessar as políticas destinadas às populações tradicionais. O MPF precisou ajuizar uma ação civil pública (ACP nº 5043925-95.2013.404.7100) contra o governo do Estado para reparação de dano moral coletivo, cobrando providências em relação a abordagens que moradores do quilombo Família Silva (que, inclusive, já possui título de suas terras) sofriam da Polícia Militar.

Segundo dados o Incra, 81 municípios do RS abrigam populações quilombolas. Desde 2004, 80 processos para titulação foram abertos no estado, mas apenas três foram concluídos: Família Silva (Porto Alegre), Chácara das Rosas (Canoas) e Casca (Mostardas).

Em Pernambuco, o MPF manifestou-se, em julho de 2012, na ação de desapropriação para regularizar a Fazenda Velha, imóvel rural situado na área do território quilombola Conceição das Crioulas, no município de Salgueiro, a 515 quilômetros de Recife. A Justiça Federal acatou, em agosto do ano passado, a ação proposta pelo Incra em favor dos quilombolas. A decisão beneficiou cerca de quatro mil pessoas que residem no local há mais de meio século, vivendo da agricultura, pesca, apicultura, pecuária e artesanato.

Outro caso em que o MPF atuou foi o do imóvel Chácara Sucupira, situado no território quilombo Castainho, no município de Garanhuns, distante 220 quilômetros de Recife. A sentença da Justiça Federal, proferida em maio de 2010, foi a favor da permanência da terra com os quilombolas. Os autores da ação, que afirmavam possuir o imóvel havia mais de dez anos, reivindicaram a reintegração de posse da chácara. A Justiça, ao negar o pedido, ressaltou que a propriedade foi adquirida em 1993, ou seja, após a Constituição Federal de 1988, e que o local já estava ocupado pela comunidade remanescente do quilombo Castainho.

No Amazonas, o MPF vem adotando uma série de ações, a maioria delas extrajudiciais. Instaurou, por exemplo, um inquérito civil público para acompanhar o processo de identificação da comunidade do Barranco, localizada no bairro da Praça 14 de Janeiro, como remanescente de quilombo. O inquérito foi iniciado após visita do procurador da República Julio José Araujo Junior à comunidade, em 16 de outubro deste ano.

Além disso, em 24 de outubro, foi realizada reunião com comunidades Santa Tereza do Matupiri, Boa Fé, São Pedro, Trindade e Ituquara, localizadas no rio Andirá, no município de Barreirinha, a 331 quilômetros de Manaus. Na comunidade Santa Tereza do Matupiri, a presidente da Federação das Organizações Quilombolas do Município de Barreirinha, Maria Amélia dos Santos Castro, relatou que fazendeiros vêm provocando limitação da área da comunidade. Segundo ela, devido a essas limitações, algumas comunidades têm sofrido dificuldades para exercer a atividade de roçado. Já o representante da comunidade Boa Fé, João Jorge de Castro Rodrigues, pediu o apoio do MPF na delimitação das terras, evitando as titulações fraudulentas. Para Sebastião Douglas, da comunidade Santa Tereza do Matupiri, sem roça a comunidade não sobrevive, pois é sua atividade essencial, de onde extraem os alimentos para subsistência e produção de recursos.

No Pará, em outubro deste ano, o MPF e o Ministério Público estadual encaminharam a órgãos públicos estaduais e federais recomendação para que sejam suspensas as licenças e autorizações expedidas para pesquisa ou concessão minerária nas unidades de conservação da região do alto rio Trombetas, nos municípios de Faro, Oriximiná e Terra Santa, no noroeste do estado, região conhecida como Calha Norte do Pará.

O Ministério Público recomenda que a concessão ou não de novas licenças só seja decidida depois da realização de consulta prévia, livre e informada com as comunidades tradicionais da região. A consulta prévia é determinada pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.

Em Santa Catarina, no início de 2013, o MPF requereu à Justiça Federal de Joaçaba a continuidade do processo de formação do Território Quilombola da Invernada dos Negros, na localidade de Corredeira, entre os municípios de Abdon Batista e Campos Novos, na região meio-oeste do Estado. O órgão rechaça a tese de que as ações de desapropriações estariam inviabilizadas pela ocorrência da decadência, passados mais de dois anos da assinatura do decreto presidencial de interesse social do território tradicional.

As ações de desapropriação, movidas pelo Incra, tem por objetivo promover a indenização, em dinheiro, dos agricultores que residem na área do Território Quilombola da Invernada dos Negros. O primeiro processo, já julgado em 2012, terminou em acordo entre o proprietário e o Incra.

No parecer, acolhido pela Justiça Federal, o procurador da República em Joaçaba, Daniel Ricken, e o procurador regional dos Direitos do Cidadão, Maurício Pessutto, afirmaram que a implementação dos territórios quilombolas “recupera a dignidade do elemento negro, ao reconhecer sua importância para a proteção da cultura brasileira tutelando sua representatividade e identidade étnica”. Argumentaram, ainda, que os novos residentes, que explorarão a área em uso coletivo, terão assim garantidos tanto o direito à moradia quanto à preservação de suas práticas, usos e costumes.

Segundo os procuradores, identificada a Comunidade Remanescente de Quilombo e a sua área territorial nos moldes legalmente previstos, as ações de desapropriação em face de atuais ocupantes é medida administrativa naturalmente decorrente, à qual o Estado se obriga para regularização fundiária. Sendo assim, não cabe a fixação de prazo decadencial para sua promoção.

História

A Comunidade Remanescente de Quilombo Invernada dos Negros é composta por aproximadamente 30 famílias cujas origens remontam ao fim do século XIX. Em 1876, um fazendeiro da região, Matheus José de Souza e Oliveira, declarou em seu testamento que um terço de sua propriedade seria deixada a seus escravos, numa área de quase 8 mil hectares. Na época, o advogado responsável pela divisão de terras entre os herdeiros do fazendeiro apropriou-se de quase metade da área de terra legada aos ex-escravos.

Em 1988, com a promulgação da Constituição, passou-se a garantir às comunidades remanescentes de quilombolas o direito às terras que tradicionalmente possuíam. Essas áreas, destinadas a exploração coletiva, tem como garantir aos descendentes de escravos a preservação de seu modo de vida e de suas manifestações culturais.

Em 2004, o Incra iniciou o processo de titulação da área, acompanhado de perto pelo Ministério Público Federal. Após estudos e longas discussões judiciais, que incluíram uma audiência pública realizada pelo MPF, em 17 de junho de 2010 foi assinado pelo Presidente da República o decreto que declara os imóveis abrangidos pelo Território Quilombola Invernada dos Negros como de interesse social, determinando ao Incra a tomada das medidas para a avaliação e desapropriação dos terrenos, mediante o pagamento de indenização em dinheiro. Até fevereiro deste ano, dos mais de quarenta terrenos que integram o território, já foram propostas quatro ações de desapropriação na Vara Federal de Joaçaba, estando três ainda em tramitação na Vara Federal de Joaçaba e, na última, já concluída, o antigo proprietário recebeu a indenização correspondente.

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