Por Elaíze Farias, Amazônia Real
O planejamento de construção de hidrelétricas na bacia do rio Negro (AM) deve criar um novo palco de conflitos sociais a exemplo do que acontece hoje na região do Xingu, com a barragem de Belo Monte, e no território dos índios munduruku, com a hidrelétrica do Tapajós. As duas barragens ficam no Pará. A avaliação é da doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Gláucia Baraúna.
“A projeção atual da criação de mais hidrelétricas ameaça a integridade dos povos indígenas e comunidades tradicionais na Amazônia. Muitos desses povos já vêm se reunindo para fazer resistência aos novos empreendimentos”, afirma Gláucia, que desenvolve pesquisa de doutorado sobre as barragens da área do rio Madeira, em Rondônia.
O planejamento de hidrelétricas para a bacia do rio Negro também não é uma surpresa. Segundo Gláucia Baraúna ele representa o resgate de antigos projetos que remontam o período do regime militar no Brasil para a região, cujas maiores heranças, consideradas por ela como “desastrosas”, são as usinas de Tucuruí, no Pará, de Balbina, no Amazonas, e de Samuel, em Rondônia.
“Semelhante ao que temos visto atualmente, estas hidrelétricas foram erguidas para atender os interesses de empresas mineradoras. Foram empreendimentos que afetaram centenas de agentes sociais, entre indígenas e não-indígenas, que tiveram suas vidas marcadas pela falta de reconhecimento dos seus direitos e poucas conquistas, mediante uma série de problemas ambientais e sociais resultantes de tais intervenções”, avaliou Gláucia, que integra o grupo de pesquisa Nova Cartografia Social da Amazônia (Ufam).
Em suas pesquisas, Gláucia identificou que a bacia do rio Negro passou a ser mencionada no planejamento energético do país na década de 90 devido a sua vocação econômica para a exploração mineral.
A bacia do rio Negro, especialmente na área das corredeiras localizadas na região do Alto Rio Negro, no norte do Amazonas, passa atualmente por estudos socioambientais da Empresa de Pesquisa Energética (EPE).
Em nota enviada ao portal Amazônia Real na semana passada, a assessoria de imprensa da EPE disse que o estudo é um diagnóstico socioambiental prévio ao inventário hidrelétrico a fim de ampliar o conhecimento sobre as características socioambientais da bacia. O estudo tem previsão de encerramento para março de 2014. Conforme a assessoria, no âmbito deste estudo, não serão realizadas pesquisas de campo para coleta de dados primários.
“O estudo em questão é estritamente de meio ambiente. Considerações sobre potencial hidrelétrico serão realizadas a partir de estudos futuros que conformem o inventário hidrelétrico da bacia do rio Negro”, disse a assessoria, em nota enviada ao portal.
Sobre a reunião realizada em Manaus em outubro, a assessoria da EPE disse que ela “contribuiu para obter maior conhecimento sobre os principais alvos para conservação da biodiversidade na bacia” e que “para o prosseguimento do estudo, estão previstas novas consultas aos especialistas da região”.
“Estudos livres”
Na extensão de toda a bacia do rio Negro, segundo o antropólogo, arqueólogo e consultor ambiental Fábio Origuela, há registro de 40 etnias, 86 territórios indígenas reconhecidos e 16 sem reconhecimento, além de 77 unidades de conservação de uso direto e indireto.
No ecossistema, a região possui, segundo Origuela, ambientes únicos de campinaras, campos rupestres nas serras e piaçabais, vegetação “singular” da região amazônica.
“Ali temos povos indígenas que guardam em sua mitologia sua história de adaptação e desenvolvimento neste meio único em termos socioculturais. Análogo, na atualidade, apenas com o Alto Xingu”, disse Origuela.
Estudioso da região do Alto Rio Negro, onde trabalhou e morou durante sete anos, Fábio Origuela diz que a EPE não contrataria serviços técnicos de diagnóstico socioambiental no rio Negro se a área não tivesse potencial, embora isto não signifique que haverá viabilidade devido aos grandes esforços de deslocamento de maquinário e pessoal para o local.
“O que importa é que a partir destes estudos o rio Negro entra definitivamente no mapa energético. Pode não ser agora, pode não ser amanhã, mas se continuar neste ritmo não irá tardar”, afirmou.
Para Fábio Origuela, a reação frente à construção de hidrelétricas deve ocorrer “agora”, com a mobilização de uma rede de pesquisadores e das organizações indígenas e ribeirinhas e não durante as consultas públicas dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA/Rima). Ele sugere a elaboração de um contra laudo, ou seja, um estudo livre da pressão de empreendedor para colocar um ordenamento nos próximos passos da EPE. “Seriam estudos de potencial e viabilidade, tendo em vista a modificação sem precedentes que a região pode sofrer”, disse.
Origuela reconhece que estudos como estes podem não barrar os empreendimentos, mas “jogam na mesa de discussão dados igualitários onde os envolvidos podem ter voz impositiva sobre o projeto”.
“Não é uma questão de barrar (o projeto da hidrelétrica). Ainda não há força suficiente para isso, mas dialogar, de não fazer de qualquer forma, entender que existe uma riqueza socioambiental que não deve ser desprezada. Creio num otimismo robusto em que ao menos haja um diálogo entre este Estado e nós que cremos que o rio Negro não precise (e a população) destas hidrelétricas”, afirmou.