Após anos de resistência, 252 famílias da favela Jardim Edite estão definitivamente instaladas na ‘esquina do ouro’ de São Paulo
Por Rodrigo Gomes, da Rede Brasil Atual
São Paulo – Pressão, ameaças, manobras políticas, tentativa de cooptação, incêndio. Contra isso, a teimosia. Esta é a palavra para definir a resistência que fez 252 famílias da favela Jardim Edite, que durante três décadas viveram na várzea do córrego Água Espraiada, se tornarem moradoras fixas de um conjunto habitacional do cruzamento das avenidas Luís Carlos Berrini, Jornalista Roberto Marinho e Chucri Zaidan, um lugar que já foi chamado de “esquina da riqueza com a mina de ouro” de São Paulo.
“Há 50 anos, isso aqui era um lugar que ninguém queria saber. Era só mato e enchente. Ponto do ônibus era só na avenida Santo Amaro. A avenida Luís Carlos Berrini se chamava Marginal e corria à beira de um pequeno riacho que saía do córrego Água Espraiada”, conta o líder comunitário do Jardim Edite, Gerôncio Henrique Neto, de 70 anos.
Ele chegou ao local em 1961, quando a área tinha poucas casas e a maior parte dos terrenos ainda eram chácaras. Em 1964, Gerôncio foi para Alagoas, buscar a esposa e os quatro filhos, e voltou para a região do Jardim Edite em 1971. “A gente vivia de aluguel em um cômodo. Quando começaram a desapropriar para construir um anel viário, em 1973, eu dei um dinheiro para o dono da casa que foi desapropriado fazer a mudança dele e fiquei com a casa”, conta.
O anel viário era projeto do prefeito Prestes Maia (1961-1964), sancionado em 1964, mas que não foi levado adiante. A ideia de ficar com a casa se mostrou correta, pois com os terrenos desapropriados e sem uso um imenso contingente de famílias de baixa renda e imigrantes começou a ocupar a região. A comunidade Jardim Edite chegou a ter 12 mil famílias e ocupou toda área do cruzamento citado, até o terreno onde hoje está a Globo.
“Quando o Maluf fez a avenida Água Espraiada ele já queria ter tirado a favela toda. Deve ter faltado dinheiro. Mas a maior parte do povo foi removido naquela época”, afirmou Gerôncio. Porém, após a inauguração da avenida, em 1996, não houve mais intervenções no Jardim Edite, que ficou com 268 famílias naquele momento.
Uma das removidas do Jardim Edite foi Joana Pereira dos Santos, que morava na beira do córrego, onde hoje começa a alça de acesso da ponte estaiada Otávio Frias de Oliveira, na zona sul da cidade. “Eu morava bem aqui”, diz, apontando para o córrego Água Espraiada. Hoje, aos 55 anos, ela distribui folhetos de lançamentos imobiliários sobre o lugar onde ficava sua casa.
Os que permaneceram, como José Santana de Souza, de 70 anos, nunca conseguiram entender o que fez mudar tanto a visão sobre o local em que vive há 55 anos. “A gente vivia tirando sapo e cobra de dentro de casa, que vinham nas enchentes. Às vezes tinha de ficar dois dias fora de casa, esperando a água baixar. Vai saber por que tanta gente queria esse lugar”, comenta.
Souza veio de Serra Talhada, no interior de Pernambuco, fugindo da seca e do desemprego. “Eu vim para cá com 14 anos. Meu pai não conseguia emprego e a gente não tinha o que, nem como, plantar. Quando chegamos aqui era tudo chácara. A gente tirava água de poço ou de bica”, relata. Ele também lembra que o crescimento das favelas se deu após as desapropriações. “Eu fui engolido pela favela, que só começou a crescer 15 anos depois, nas terras vazias.” Muitas casas foram demolidas ou ficaram abandonadas, assim como os terrenos.
“Eu sempre acreditei que íamos permanecer e hoje estamos aproveitando a nossa vitória”, afirma ele, que se diz muito satisfeito com a nova moradia. “É um sonho real.”
O morador do apartamento 53, no quinto andar do conjunto habitacional Jardim Edite, também é só orgulho ao mostrar a casa. “Aqui está bom demais, nós estamos no céu”, exalta o aposentado Francisco de Assis Batista, de 72 anos, 32 deles na comunidade. Com ele vive a esposa Geralda Moura Batista, de 66, que ainda se adapta a vida em apartamento. “É tranquilo de viver, mas tenho a impressão de que o povo não se fala mais como antes”, comenta Geralda.
Os dois vieram da Paraíba em 1972, com quatro filhos. Viveram em pensão, de aluguel e de favor. Até que, em 1981, Batista comprou um barraco no Edite. “A favela estava bem organizada, tinha ligação de água e de luz, mas as ruas eram de terra, e os barracos, quase todos, de madeira. Com o tempo surgiu padaria, mercadinho, tinha até uns bailes com forró”, lembra.
A terra e a madeira da memória contrastam com o que hoje é grande avenida, ponte e arranha-céus, com movimentação constante de carros e pessoas. “A vista do nosso apartamento é muito bonita, dá para ver a ponte estaiada inteira. Mas acho que esse barulho constante é o que perturba Geralda”, explica Batista, entre riso e choro. “Mas nossos netos vêm nos visitar e ela vai alegrar. Olha, meu maior orgulho é receber meus seis netos nessa casa.”
Cinco torres formam o conjunto habitacional Jardim Edite. Na lateral do conjunto há uma Unidade Básica de Saúde, uma creche e um restaurante escola. A UBS ainda não foi ativada, porque a rede elétrica não suporta todos os equipamentos. O projeto foi feito em parceria com a União de Movimentos de Moradia.
O conjunto habitacional Jardim Edite começou a receber os moradores em dezembro do ano passado. As casas foram entregues sem acabamento. Mas, com a ajuda dos filhos, Batista e Geralda colocaram pisos, azulejos e pintaram paredes. “Muita gente fala que foi milagre de Deus a gente ter ficado aqui. Eu também acho, mas a conquista da moradia não foi um presente, como muitos pensam. Além da luta, serão 20 anos pagando R$ 105 de prestação, mais R$ 104 de condomínio”, Batista faz questão de destacar.
O morador sintetiza um sentimento de admiração pelo líder comunitário. “O Gerôncio não ganhou nada com isso aqui, não. Vivia para cima e para baixo carregado de documento, brigando com gente graúda: prefeito, vereador, empresário. Até ameaçado de morte ele foi”, afirma Batista.
Caminho Tortuoso
Chegar ao conjunto habitacional Jardim Edite hoje e ver seus moradores entrando e saindo, crianças indo e vindo da escola, pode confundir quem não conhece os anos de incerteza e resistência que suas famílias viveram. Seus moradores simpáticos e abertos a uma prosa no pequeno jardim em frente ao prédio são o melhor caminho para reconstruir essa história, que tem um marco importante na virada do século.
Em dezembro de 2001, na gestão da prefeita Marta Suplicy (PT, 2001-2004), foi aprovada a primeira Operação Urbana Consorciada, instrumento previsto no Estatuto das Cidades que propõe uma série de intervenções visando à melhoria da infraestrutura e à revitalização de regiões, em uma parceria entre poder público e iniciativa privada, justamente para a região do córrego Água Espraiada.
Apesar das contradições na execução das intervenções, que em geral possibilitou o investimento privado em detrimento dos espaços públicos e da população de baixa renda, foi justamente a operação que deu embasamento legal para manter a comunidade. “Quando conseguimos que o terreno da favela fosse marcado como Zona Especial de Interesse Social (Zeis) tivemos o alicerce da resistência dos 11 anos seguintes”, explica Gerôncio, que participou ativamente das discussões do Plano Diretor, em 2002, quando foram definidas as Zeis.
Ao ser demarcado como Zeis, um determinado terreno deve, necessariamente, servir para a construção de habitações de interesse social, voltada para o atendimento da população de baixa renda. No caso do Jardim Edite, era uma Zeis 1, uma área já ocupada por população pobre em situação de vulnerabilidade e que deve ser atendida no mesmo local.
Demarcar as Zeis foi um passo, mas não queria dizer que seria fácil. As gestões de José Serra (PSDB, 2005-2006) e Gilberto Kassab (PSD, 2006-2012) foram contrárias à permanência dos moradores no local, inclusive removendo a demarcação de zona especial do local. “Eu discuti com o Serra, porque ele dizia que não ia construir moradia aqui. Eu respondi: ‘O senhor não conhece a lei'”, contou Gerôncio.
A ação de desmarcar a Zeis foi uma tentativa de burlar a legislação, já que a operação urbana compreende que as famílias afetadas por remoção devem ser atendidas com alternativas habitacionais dentro do perímetro definido para intervenção. “A nossa Zeis foi desmarcada três vezes. Sempre na surdina. Mas a gente acompanhava de perto, teve muita gente que ajudou, dava toques. E a gente brigava, ia na Defensoria, no Ministério Público. Até demarcar a zona de novo”, relatou Gerôncio.
Um problema constante eram as tentativas de impedir a população de participar das discussões sobre a Operação Urbana, uma estratégia que atingiu o clímax em 2007. “Fizeram uma audiência pública sobre a operação urbana na subprefeitura de Pinheiros, em setembro, e não queriam que a gente participasse. Nós lotamos o lugar e teimamos que íamos participar. Eles não conseguiram fazer a reunião, então remarcaram para um clube, para caber todo mundo”, relata Gerôncio.
O líder comunitário entende que a rebeldia dos moradores que exigiam seus direitos teve um preço. “A reunião foi no dia 3 de setembro, no dia 4 pegou fogo na favela”, lembra Gerôncio. “A coisa foi tão estranha que no dia seguinte, cedinho, estavam todos aqui: secretários de assistência social e habitação, e o prefeito Kassab, com muitas alternativas para que as pessoas deixassem a favela”, relata. Naquele dia Kassab disse à Rádio Eldorado: “O que acontecerá agora é a antecipação das ações em relação às famílias atingidas”.
As chamas consumiram as moradias de 92 famílias, que perderam tudo no incêndio. Mas a pressão não parou por aí. “O Nilton Elias Nachle, subprefeito de Pinheiros, disse que não seria construída nenhuma unidade habitacional aqui. Muita gente acreditou e acabou aceitando os R$ 5 mil que a prefeitura estava oferecendo para quem deixasse a comunidade, e foram embora”, conta Gerôncio.
Após o episódio, Gerôncio apostou suas últimas fichas na Justiça paulista. “Em outubro de 2007 nós entramos com uma ação na Justiça, exigindo nosso direito de permanecer no local, com base na lei”, relata. Naquele momento a comunidade tinha 820 famílias. Mesmo assim, ainda receberam ofertas para viver em unidades que seriam construídas nos bairro de José Bonifácio, no extremo leste da capital, no Campo Limpo, zona oeste, ou ali perto, próximo às extintas favelas do Comando e do Buraco Quente.
As famílias começaram a ser removidas da comunidade ainda em 2007, cada uma com uma promessa diferente e por um motivo idem: atingidos pelo incêndio, área de risco, construção da ponte estaiada Otávio Frias de Oliveira. Os números de moradias que seriam construídas no local também variavam: 150, 180, 200 apartamentos.
Finalmente, em 3 de abril de 2009, “o juiz decidiu que a gente tinha o direito de morar aqui”, relembra Gerôncio. Nessa mesma época, os moradores removidos lutavam para conseguir um aumento no valor do auxílio-aluguel, à época em R$ 300, e reclamavam que a prefeitura estava atrasando os pagamentos. “Foi mais uma briga feia, mas conseguimos na Justiça um auxílio de R$ 500, pelo tempo que a obra levasse”, explica Gerôncio.
O último morador a deixar o local foi o pipoqueiro José Marcos Carneiro, de 50 anos, no dia 13 de junho de 2012. Ele viveu 40 anos na comunidade, mas não voltou para o conjunto habitacional. Com seus sete filhos, três netos, uma nora e a esposa, Carneiro deve viver no conjunto Estevão Baião, na rua de mesmo nome, próximo à avenida Washington Luís, que terá 300 apartamentos e está em construção.
Nas contas finais da remoção da comunidade, além das atendidas no conjunto habitacional, 244 famílias optaram pela ajuda de custo de R$ 5 mil. Outras 130 receberam auxílio de até R$ 8 mil. 54 famílias optaram pelo empreendimento residencial Estevão Baião.
Outras quatro escolheram o conjunto da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) em José Bonifácio. E 114 preferiram ir para o Campo Limpo, em outro empreendimento da CDHU.
Os primeiros 150 apartamentos do Jardim Edite foram entregues em dezembro de 2012. Os últimos em maio deste ano. Gerôncio mora no apartamento 81, no oitavo andar, do prédio Edite 1. Com ele vive a esposa, dona Corália, e uma neta de 18 anos, cujo pai morreu. Uma filha é sua vizinha de porta, outra vive no 12º andar e um filho no 6º. Um filho foi para Votorantim, no interior paulista, e outro para o Capão Redondo, zona sudoeste da capital.
Gerôncio assumiu a liderança comunitária em 1995, “no tempo do Maluf”. Vão-se aí 18 anos de lutas. Como explicar a persistência? “Rapaz, eu vim para São Paulo fugindo da seca e da fome. E para me tratar de um problema no estômago, do qual tive de ser operado. Aqui no Edite eu perdi dois filhos. Um morto pela polícia, outro por bandidos. Mas eu nunca perdi a fé na justiça, é isso que me move”, conclui.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.