Para especialistas, lei abre brechas para abusos. Projeto no centro de SP pode usar nova regra. Estado decretou interesse em 940 terrenos e imóveis. A maioria ocupada por famílias e comércios
Por Gisele Brito, da RBA
O governo de São Paulo pretende repassar a empresas privadas o direito de desapropriar imóveis em obras que tenham participação do poder público, inclusive para áreas adjacentes aos projetos originais.
A manobra é possível graças a um artigo inserido de contrabando pelo Congresso Nacional em uma Medida Provisória (MP) que tratava de armazenagem de grãos, e que foi sancionada pela presidenta Dilma Rousseff no final do mês passado na promulgação da lei 12.873/13.
A MP e teve a inclusão de 92 emendas de senadores e deputados. No site da Câmara é possível saber o conteúdo e autor de cada uma delas, mas na que introduziu o artigo que trata das desapropriações não aparece a autoria. A MP foi relatada pelo deputado baiano João Carlos Bacelar Filho (PR).
Para o subsecretário da Casa Paulista, pasta do governo de São Paulo que tirou o protagonismo da Cohab na elaboração de programas de habitação, Reinaldo Iapequino, a mudança pode “facilitar” a ação do Estado, que estuda sua aplicação na Parceria Público-Privada (PPP) em vias de ser licitada para o centro da capital.
A proposta é construir 20 mil unidades habitacionais em bairros centrais. Para isso, a gestão do governador Geraldo Alckmin (PSDB) sinalizou interesse em desapropriar 940 áreas, com o argumento de que eles estariam subutilizados ou desocupados.
Mas, conforme mostrou reportagem da RBA, a maioria desses imóveis serve de moradia para famílias ou como ponto comercial. Na lista dos prédios marcados para cair, existem até igrejas, creches, pizzarias antigas e prédios de uso misto. Segundo os moradores atingidos, apenas 85 imóveis estão vazios ou desocupados e 55 são terrenos.
Iapequino reconhece que houve falhas no estudo, mas acredita em um número bem menor. Um novo levantamento para verificar erros deve terminar ainda esta semana.
Ainda assim, a nova legislação poderia ser usada para desapropriar as áreas restantes. “A gente ainda está examinando. Já pedimos para a Procuradoria Geral do Estado que faça esse exame. No negócio não impacta, pode criar alguns facilitadores para o Estado desapropriar. Nem sei se vamos usar esses novos instrumentos dentro da PPP”, disse.
Para especialistas, a mudança na lei de desapropriações abre espaço para que sejam implementadas em todo o país parcerias público-privadas e concessões urbanísticas, que vinham sendo fortemente combatidas em São Paulo, por serem entendidas como um mecanismo que rompe com o pressuposto de que as desapropriações devem atender ao interesse comum dos cidadãos de um lugar. O que dá brechas para abusos e desrespeito na hora de indenizar moradores e comerciantes.
“Você trata a desapropriação, algo que era de competência do poder Executivo, para realizar sua finalidade, que é atender ao bem comum, estimulado pelo interesse público, para a iniciativa privada, que faz isso com o objetivo de obter lucro”, explica a advogada do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos Juliana Avanci.
A lógica é a seguinte: as empreiteiras desenvolvem projetos para áreas desvalorizadas da cidade, mas que possuem infraestrutura urbana, como no caso da Luz e dos bairros atingidos pelo Casa Paulista, na região central da capital. Compram os imóveis por valores baixos cientes de que terão total apoio do governo para realizar projetos de urbanização. Depois de embelezar a região e construir prédios de alto padrão, os imóveis são vendidos por um preço que compensa o investimento realizado e o valor da desapropriação. Os moradores que viviam na área antes das melhorias são obrigados a sair e não conseguem acessar nenhuma das melhorias.
No início do ano, os defensores do instrumento urbanístico sofreram forte derrota ao verem enterrado o projeto Nova Luz, uma das principais bandeiras do ex-prefeito da capital, Gilberto Kassab (PSD). O Nova Luz prometia “revitalizar” bairros da região central, na chamada cracolândia, ao custo da desapropriação de 30% do perímetro, que seria concedido a empresas privadas.
Para impedir que o projeto seguisse em frente, a associação comercial e os moradores da região apontaram a falta de participação popular na tramitação do projeto – até o último dia, eles não tinham informações concretas sobre qual seria o seu destino caso fossem desapropriados – e a inconstitucionalidade da Concessão Urbanística.
Assim que assumiu, em janeiro deste ano, o prefeito Fernando Haddad (PT) suspendeu e posteriormente arquivou o projeto de Kassab.
Para a relatora das Nações Unidas para Moradia Adequada, Raquel Rolnik, o artigo “contrabandeado” dentro da nova lei de desapropriações tem o objetivo de impedir juridicamente o combate a essa “privatização” da função do Estado e atende a interesses claros: os das empreiteiras.
“Aquilo está endereçado para as empresas que hoje, na estratégia de diversificação de investimentos e de suas áreas de atuação, começaram a fazer desenvolvimentos imobiliários públicos”, afirma.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.