Marco temporal: o direito originário à terra tradicional ameaçado

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A afirmação pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) de que “os artigos 231 e 232 da Constituição Federal constituem um completo estatuto jurídico da causa indígena[1]”, e a posição doutrinária de que “a relação dos índios com suas terras e o reconhecimento de seus direitos originários sobre elas nada mais fizeram do que consagrar e consolidar o indigenato, velha e tradicional instituição jurídica luso brasileira desde os tempos da Colônia[2]”, acaba por frear a ânsia insolente do agronegócio sobre os direitos das populações indígenas.

Recentemente a Corte Suprema concluiu o julgamento relacionado à terra indígena Raposa Serra do Sol, iniciado no ano de 2009, sob a relatoria do ministro Roberto Barroso. Na decisão, definiu-se pela demarcação contínua, sendo a caracterização da área como terra indígena, para os fins dos art. 20, XI, e 231, da Constituição, tornando insubsistente eventuais pretensões possessórias ou dominiais de particulares.

Em ponto fundamental da decisão sobre os Embargos de Declaração, o senador Augusto Affonso Botelho Neto teve seu recurso desprovido. O embargante suscitou que a Fazenda Guanabara deveria ser excluída da área demarcada por ser de ocupação privada desde 1918, com domínio reconhecido por sentença proferida em ação discriminatória, transitada em julgado em 1983.

Contudo, a Corte não acolheu a tese e não verificou qualquer vício. Ao contrário, a decisão destacou o caráter originário do direito dos índios, preponderante sobre quaisquer outros, assim definido no voto do Ministro Relator:

“Não verifico qualquer vício quanto ao ponto, que foi expressa e claramente examinado no acórdão embargado. Já em sua ementa, o julgado destacou o caráter originário do direito dos índios, que preponderaria sobre quaisquer outros. Observou-se, ainda, que a ‘tradicionalidade da posse nativa […] não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, areocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das ‘fazendas’ situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da ‘Raposa Serra do Sol’”.

Ao analisar a reclamação 13769/DF de autoria do município de Amarante do Maranhão, propondo a suspensão dos estudos necessário à verificação de eventual equívoco na delimitação da terra indígena Governador, demarcada em 1982, o ministro Ricardo Lewandowski negou medida liminar, observando que a decisão referente a Reserva Raposa Serra do Sol não diz respeito a qualquer outra área indígena demarcada. Lewandowski seguiu decisão do ministro Carlos Ayres Britto, ao censurar o cabimento de reclamação análoga a examinada (Rcl 8.070/MS), referente à revisão dos limites da Terra Indígena Wawi.

Os Tribunais Regionais Federais tem seguido o entendimento do STF em diversos julgados, consolidando jurisprudência sobre o marco temporal da ocupação. Ao analisar recurso de pretensos proprietários da Terra Indígena Marãiwatsédé, dos Xavante do Mato Grosso, o TRF-1[3] assim decidiu:

“Pode-se até admitir a asserção de que não havia mais índios naquelas terras por ocasião da promulgação da Constituição Federal de 1988, mas não se pode negar a verdade de que isto se deu em razão da referida expulsão, urdida maliciosamente pelos dirigentes da Agropecuária Suiá-Missu, na década de sessenta. Talvez não houvesse índios naquelas terras no ano de 1988, mas decerto que ainda havia a memória de seus antepassados, traduzida no “sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica”, no dizer do ministro Carlos Ayres Britto, no julgamento da Petição 3388 – Raposa Serra do Sol (RR).

Entretanto, mesmo após o julgamento dos embargos de declaração da Petição 3388/RR, quando os Ministros dos STF definiram que “a decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico” e que “os fundamentos adotados não se estendem, de forma automática, a outros processos que se discuta matéria similar”, o tema continua a gerar divergências.

Ao analisar o processo de demarcação da Terra Indígena Kayabi, na divisa dos estados do Mato Grosso e Pará, o ministro Luiz Fux atendeu pleito do estado de Mato Grosso, e liminarmente suspendeu o registro em cartório imobiliário da área demarcada pelo Decreto Presidencial de 24 de abril de 2013. O fundamento principal do estado é o de que as terras objeto da demarcação não eram tradicionalmente ocupadas pelos Kayabi ao tempo da promulgação da Constituição de 1988. A antecipação de tutela foi deferida na ACO 2224, a ser referendada pelo Plenário.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que atua junto aos povos indígenas do Brasil há mais de 40 anos, tem compreensão firme de que as demarcações das terras indígenas com a consequente posse dos índios é medida essencial para por fim aos conflitos, garante segurança jurídica e é medida de justiça para com as populações originárias, historicamente massacradas pelos interesses colonialistas, que se renovam e se fundem com os interesses atuais do latifúndio.

A tese do marco temporal, no contexto indígena, deve ser analisada com parcimônia, sob pena de negar o direito originário e inviabilizar as demarcações de terras indígenas por todo o país. No Mato Grosso do Sul, estado onde o conflito fundiário faz mais vítimas no país, os Guarani e Kaiowá foram retirados, durante todo o século XX, de seus territórios e lançados em oito diminutas reservas, que hoje os mantêm em confinamento, ou jogados às margens de estradas. O mesmo ocorreu no Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Bahia, Mato Grosso, entre outros. Em 1988, a sanha colonizadora tinha garantido a expulsão de centenas de comunidades dos territórios tradicionais.

Mesmo que retirados à força das terras tradicionais, as raízes destes povos seguem em seus territórios, hoje tomados por fazendas de gado e monocultivo. Os antepassados lá estão enterrados ou lá morreram assassinados resistindo ao esbulho das terras sagradas, como prova o Relatório Figueiredo. A tese do marco temporal não pode se transformar em injustiça contra as populações originárias ou significar a desconstrução de direitos constitucionais. Não somente os povos indígenas perdem com ele, mas também a sociedade brasileira e a própria democracia.

Com alteridade, os indígenas exigem a garantia do Estado e da Justiça para que possam ocupar, conforme direitos constitucionais conquistados, suas terras tradicionais e restituir as próprias vidas em toda pluralidade conferida a elas.

Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

Brasília, 12 de novembro de 2013

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