Estudo compara queda dos autos de resistência com aumento de pessoas desaparecidas. “Em 2013, o número de pessoas desaparecidas já chega a quase 1 mil, enquanto as mortes em autos de resistência, 700”
Por Cláudia Freitas, no Jornal do Brasil
As estatísticas sobre criminalidade no Estado do Rio de Janeiro divulgadas recentemente pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), referentes ao mês de agosto de 2013, estão servindo de base para um estudo dos princípios da violência na cidade, elaborado pelo Instituto dos Defensores dos Direitos Humanos (IDDH). O projeto do IDDH tem como meta traçar um perfil das pessoas desaparecidas no Rio, nos últimos anos, comparando o aumento no número de registros desses casos com a diminuição dos autos de resistência (morte em confronto com a polícia), além de prever um suporte jurídico e psicossocial para as famílias das vítimas.
Os responsáveis pela pesquisa avaliam que os policiais militares estão cometendo mais assassinatos, porém passaram a sumir com o corpo da vítima, para atrapalhar as investigações. O desenvolvimento do projeto deverá ser custeado com a renda integral do show “Somo Todos Amarildos”, com a participação de Caetano Veloso e Marisa Monte, que será realizado no dia 20 de novembro, no Circo Voador, na Lapa, Centro da cidade.
O jurista João Tancredo, presidente do IDDH, acredita que a pesquisa vai evidenciar a relação existente entre o número de desaparecidos no Estado com a redução de uma ocorrência policial conhecida como auto de resistência. Tancredo tem recebido no instituto um número crescentes de denúncias de familiares de pessoas que não são mais encontradas após abordagens feitas por policiais militares em operações da corporação ou em blitz. “Esses relatos nos levam à conclusão de que os PMs continuam cometendo crimes, especialmente nas comunidades carentes, talvez até com mais frequência, só que agora eles somem com os corpos das vítimas, como forma de atrapalhar as investigações. Quando eles optam por desaparecer com o corpo, é claro que estão buscando meios de preservar a corporação e, consequentemente, também interferem nos números da criminalidade”, explicou o jurista.
A proposta de João Tancredo é formar um grupo de trabalho para desenvolver a pesquisa, composto por cientistas sociais, psicólogos, assistentes sociais, advogados e entidades e movimentos sociais empenhados nas questões da violência urbana. Primeiramente, será feito um levantamento de todos os casos relatados pelos denunciantes ao instituto e das estatísticas do ISP, para se chegar às conclusões e cálculos finais. Uma das ONGS mais atuantes nas manifestações populares contra a criminalidade e violência policial, a Rio de Paz, já confirmou na sua participação no projeto.
Segundo Tancredo, o ano de 2007 foi um dos mais violentos e teve um número recorde de auto de resistência. “Foram 1330 pessoas assassinadas, de acordo com os registros feitos nas delegacias, um recorde histórico. No entanto, nesse mesmo ano o número de pessoas desaparecidas era de 380”, informou o advogado. Já em 2008, ainda de acordo com as análises do IDDH, o quadro começa a se inverter no ano seguinte, com um expressivo aumento no número de desaparecidos e redução nas mortes durante confronto com a PM. “Em 2013, o número de pessoas desaparecidas já chega a quase 1 mil, enquanto as mortes em autos de resistência, 700”, diz Tancredo. A partir das estatísticas do IDDH, obtidas no somatório dos registros de denúncias e estudos oficiais, o jurista alerta que o atual cenário da violência na cidade é muito “óbvio” e “grave”, envolvendo uma corporação que tem a função de proteger o cidadão.
Pelas estatísticas divulgadas há duas semana pelo ISP, os números apontam para uma redução de 17 casos de “Homicídio Decorrente de Intervenção Policial (Auto de Resistência), com 44 casos registrados em 2012 contra 27 em 2013. Já o número de pessoas desaparecidas passou de 418 em 2012 para 517 em 2013.
Na visão do sociólogo do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (LAV/Uerj), Ignácio Cano, a pratica do auto de resistência como forma de mascarar os homicídios cometidos por policiais civis e militares passou a ser comum no cenário da segurança pública do Estado. Ele relembra que vários estudos acadêmicos e debates foram promovidos em torno do tema, por entidades e movimentos sociais contra a violência urbana. Desde o início da década de 90, agentes da PM e da civil usam dessa “metodologia” nas favelas cariocas, mas o tema ganhou repercussão internacional e estabeleceu um clima de tensão social com o caso do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, desaparecido da comunidade da Rocinha, na Zona Sul do Rio, no dia 14 de julho, após ser conduzido por PMs da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) para uma “averiguação”. Investigações do Ministério Público concluíram que Amarildo foi torturado, morto e teve o seu corpo ocultado pelos PMs, sob a orientação do próprio comandante da UPP, o major Edson Santos.
A cruel realidade mascarada pelos números oficiais
Na semana passada, o portal Viva Favela publicou uma reportagem especial do líder comunitário da Rocinha, William Oliveira, sobre a questão das pessoas desaparecidas em comunidades carentes do Rio de Janeiro. Na matéria, o sociólogo Michel Misse, diretor do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu) da UFRJ/IFCS, faz um alerta acerca das estatísticas do ISP, que pode não representar a realidade, levando em conta que a polícia faz o registro, mas não monitora o reaparecimento dessas pessoas, ou seja, são número “hipotéticos”.
As avaliações de Misse divulgadas na reportagem apresentam números que refletem uma realidade preocupante. Cerca de 71% dos desaparecidos registrados pela polícia reapareceram vivos, 15% não reapareceram e 7% reapareceram mortos. Do total de mortes, mais da metade podem ser classificados como homicídios dolosos pela suas características de execução, mas não foram considerados pela polícia ou pela secretaria de saúde como dessa natureza. Apenas 1% dos não foram registrados como homicídios, mas há conhecimento de foram assassinados pelo depoimento de parentes aos pesquisadores ou à polícia. “Se fosse possível projetar esses números para o universo de 60 000 desaparecidos registrados entre 2000 e 2012, teríamos cerca de 500 a 600 pessoas assassinadas sem registro na polícia ou na secretaria de segurança neste período, um número semelhante ao dos desaparecidos durante a ditadura em todo o Brasil”, projetou Misse na entrevista ao Viva Favela.
A história contada por uma moradora da Baixada Fluminense, que vamos identificá-la na reportagem apenas por F., ilustra bem a contabilidade apresentada por Misse. F. teve o seu marido supostamente assassinado por policiais militares do Batalhão de Mesquita, após ser abordado em uma blitz na Rodovia Presidente Dutra, próximo a casa de shows Riosampa. O marido de F. estava com os documentos do seu carro irregular e os policiais tentaram uma “negociação” para liberá-lo da infração, mas o homem se recusou a aceitar. Os policiais pediram, então, para ele e seu amigo que o acompanhava seguir o carro da PM até um local, pois “precisavam conversar e resolver o assunto”. “O meu marido e o seu amigo foram levados para um local ermo no bairro Cabuçu e ambos foram espancados e jogados num rio. Só que o amigo dele sobreviveu e conseguiu nos avisar do fato. No dia seguinte, a polícia encontrou o corpo do meu marido. Se o amigo não tivesse sobrevivido, até hoje estaríamos procurando pelo meu marido”, contou F.
A dona de casa Maria Lúcia Nunes Guerreiro, de 63 anos, conhece muito bem a dor e o desespero de esperar por alguém que desapareceu. Moradora da favela da Rocinha, na Zona Sul do Rio, Maria Lúcia vive à base de tranquilizantes e antidepressivos desde o desaparecimento de seu filho, o motoboy Lúcio Wagner Nunes Guerreio, há dez anos. Na época, Lúcio tinha 23 anos e sonhava em ter a sua frota de mototáxi na comunidade. A última vez que Maria Lúcia falou com seu filho, ele estava numa “corrida” para Vila Isabel, transportando um passageiro da comunidade. Lúcio foi parado numa blitz policial. “Eu estava preocupada porque ele tinha médico marcado e já estava atrasado, mas ele me tranquilizou dizendo que estava numa blitz, mas que logo chegaria em casa”, disse Maria. No entanto, Lúcio não chegou e a sua mãe voltou a procurá-lo. “Dessa vez atendeu um homem se identificando como policial e dizendo que ia jogar o meu filho do Alto da Boa Vista e falava também ‘ele é muito certinho pro meu gosto, muito certinho'”, contou Maria, confessando que até pensou que fosse uma brincadeira de mau gosto de um amigo, mas depois viu que se tratava de um criminoso.
Durante três meses, a dona de casa procurou pelo filho em todos os cantos da cidade, em hospitais, órgãos policiais e Instituto Médico Legal, além de solicitar ajuda policial todos os dias. O registro do desaparecimento foi feito por Lúcia na 20º DP (Vila Isabel) e ela chegou a prestar depoimento na Corregedoria Geral Unificada (CGU), no Setor de Descobertas da Polícia Civil. Na época, Maria Lúcia recebeu uma carta anônima e telefonemas indicando a localização do corpo e atribuindo o crime ao tráfico, mas nada foi comprovado. “Eu recebi uma intimação do Batalhão de Tijuca e fui até lá com o meu marido e um amigo, achando que eles tivessem alguma novidade sobre o paradeiro do meu filho, mas aconteceu um outro fato estranho. Um homem suspeito, que não estava fardado, me falou dentro do batalhão, assim que eu entrei, que ‘a polícia quando faz, faz bem feito’. Depois disso, fiquei com medo e voltamos para casa sem qualquer resposta”, contou Maria.
Dez anos e seis meses após o desaparecimento de Lúcio, Maria confessa que sua vida “se resumiu a muitos remédios e sofrimento”. “Eu não tenho Natal, Ano Novo, nem mais nenhuma data comemorativa. Choro todos os dias. Mas tenho a esperança de um dia encontrar o meu filho vivo. Tenho sim, ainda tenho” diz Maria. Quando deu essa entrevista ao Jornal do Brasil, a dona de casa estava em um local que passou a fazer parte da sua rotina quase que diária: um consultório médico.