O auditório do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) foi “ocupado”, na manhã de segunda-feira (4), pela diversidade de integrantes de movimentos sociais e organizações que estiveram presentes durante o último fim de semana em oficina da Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS) reunida sob o tema “Os Direitos Humanos em Movimento: as Organizações, as Instituições e a Rua”
Por Maurício Hashizume, da Equipe ALICE
Durante a sessão pública acompanhada pelo presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais, Jarbas Soares Júnior, e por outros membros do CNMP, ativistas e militantes apresentaram várias denúncias de violação de direitos humanos e cobraram uma atuação efetiva do Ministério Público na defesa de pessoas e grupos que vivem cotidianamente submetidas a ameaças, discriminações e violências.
“Ainda temos um Brasil que exclui, mata e extermina”, enfatizou a indígena Sonia Guajajara, da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), uma das participantes da oficina. Ela realçou que, em vez de “abraçar e cuidar da diversidade social”, o país continua violando direitos fundamentais de segmentos constituintes da sociedade, que perpassam da larga população negra brasileira aos povos indígenas. “Sem nossos territórios, não temos a garantia do direito à vida”, sustentou, sem deixar de citar que um terço das territórios ainda não foi demarcado – a despeito da Constituição Federal de 1988 ter estabelecido o prazo de cinco anos para a conclusão dos processos em curso. Diante desse quadro, pontuou Sonia, as instituições, incluindo o próprio Ministério Público, assistem ao “extermínio da população” sem que haja efetivamente o “extermínio do racismo”.
A representante da APIB também contestou frontalmente a noção e o modelo de “desenvolvimento” dominantes, as quais dão suporte atualmente a um dos maiores ataques da história contra as comunidades e povos tradicionais do país. “Quem dita as regras é o poder econômico”, acusou Sonia, realçando o “interesse privado sobre terras públicas”, traduzido no descumprimento da consulta às comunidades afetadas por empreendimentos prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e por iniciativas legislativas como o Projeto de Lei Complementar (PLP) 227, que busca abrir as portas para iniciativas de exploração de recursos naturais dentro de Terras Indígenas (TIs), e a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que propõe a transferência da atribuição pela demarcação de TIs do Executivo ao Legislativo.
Liderança do povo Guajajara, no Maranhão, ela reforçou ainda que – em nome do “relevante interesse” do Estado e da “soberania nacional” nas áreas de energia e da área militar, trazidas à tona em posicionamentos institucionais como a definição por parte do Supremo Tribunal Federal (STF) de 19 condicionantes no caso da TI Raposa Serra do Sol, em Roraima – violações aos direitos estão sendo “legalizadas”. “Que liberdade teremos em nossos terras com tudo isso lá dentro? Não somos ameaça à soberania nacional”, sublinhou, adicionando a exigência de revogação imediata da Portaria 303/2012 da Advocacia-Geral da União (AGU), que recomenda a extensão das mesmas condicionantes às outras TIs do Brasil.
Criminalização da pobreza
“Eu sou uma ex-moradora de rua. Tenho orgulho de dizer isso. Morei nas ruas de Salvador por 16 anos. E hoje estou aqui frente a frente com vocês, conversando de igual para igual”, apresentou-se, perante alguns dos titulares do CNMP, Maria Lúcia Santos Pereira da Silva, da coordenação do Movimento Nacional da População de Rua. Ela reafirmou a gravidade do extermínio da juventude negra, da violência sistemática contra lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais e transgêneros (que, conforme ela, têm o “direito de gostar, de amar” cerceado), contra as mulheres (“inteligentes, produtivas e batalhadoras para um Brasil diferente”, colocou ela, muito mais que apenas “corpos desejados”) e do encarceramento em massa.
“O presídio tem cara, raça e classe: são jovens, negros e pobres. Somos mesmo esses vilões?”, indagou Maria Lúcia, em crítica direta à “criminalização da pobreza”, complementada pela intensa violência policial, seja associada a grandes eventos – como a Copa do Mundo de futebol de 2014 – ou a grandes obras e negócios. Um “Brasil Sem Miséria”, adotado como slogan do governo capitaneado pela presidenta Dilma Rousseff, não deve se dar, de acordo com ela, com base no “assassinato de miseráveis”.
Maria Lúcia fez questão de recordar o caso do vereador José Paulo Carvalho de Oliveira (PTdoB), o “Russo”, de Piraí (RJ) que, em sessão sobre os 25 anos da Constituição em vigor, disse que moradoras e moradores de rua não teriam que votar e deveriam “virar ração para peixe”. “Incitam a violência contra nós. Como se fosse fácil viver em situação degradante”, assinalou. Com o intuito de “limpar” as cidades, pessoas são tratadas, emendou, “como se fossem bichos”. “Espero que aqui [no CNMP] os nossos gritos possam ser escutados”, afirmou. Juntamente com o desafio às autoridades no sentido de uma aproximação mais horizontal com os “grupos oprimidos” a fim de uma compreensão e um enfrentamento mais efetivo a tantas violações, ela cobrou a inclusão de mais negras e negros dentro do MP.
Criminalização dos movimentos
Duas jovens participantes da oficina da UPMS – Carolina Sousa (Movimento Passe Livre) e Isabella Miranda (Comitês Populares da Copa) – também estiveram na tribuna do auditório do CNMP para reivindicar a democratização das cidades, com medidas como a ampliação da mobilidade urbana para a garantia de melhores condições de vida. Além de reconhecer a sabedoria dos militantes históricos dos movimentos sociais (lembrando que a juventude saiu às ruas mais recentemente graças ao “muito tempo de rua” que essas pessoas e coletivos “cavaram nesse país”), ambas homenagearam Luís Estrela, artista em situação de rua que foi assassinado em Belo Horizonte (MG) pela polícia durante as recentes manifestações. As investigações do crime não foram adiante e uma ocupação urbana de um antigo sanatório infantil da capital mineira, que ganhou o nome do poeta, foi organizada por coletivos culturais.
As cidades brasileiras, como fez referência Isabella, têm se consolidado como espaços de “exclusão, segregação, racismo e violência”. Cerca de 37 milhões de pessoas não tem condições de usufruir da mobilidade, ou seja, não tem direito a viver nos conglomerados urbanos – tomados pelo capital e por empresas, com prevalência da lógica privatista. Nas cidades que receberam jogos da Copa, foram realizadas 170 mil remoções. “O que está em questão é a vida das pessoas”, acusou a jovem que atua no Comitê Popular da Copa de Belo Horizonte. Ela condenou tanto o “racismo institucional” (expresso em autoridades que não têm a “cara do povo”, dentro e fora do MP) como a tentativa de promotores e procuradores de assumir o papel e tentar “representar” protagonistas sociais. Cobrou ainda uma posição mais clara em relação às violações (mais “pública” e menos afeita aos “interesses de apenas uma classe social”), assim como uma maior abertura e sensibilidade aos sujeitos que estão “nos movimentos, nas ruas, nas periferias”.
“Manifestantes que estão sendo presos e processados só por exercerem o direito de estar na rua”, acrescentou Carol. “Somos tratados como inimigos. E, como inimigos, temos que ser eliminados. Manifestante hoje é vândalo. Pobre negro hoje é bandido”, resumiu. Além de “omisso no controle e na punição da violência policial que sentimos nos nossos corpos”, o MP tem feito, segundo a integrante do Movimento Passe Livre com atuação em Florianópolis (SC) e em São Paulo (SP), “pior”: tem integrado “comissões que criminalizam ainda mais” os movimentos sociais. “Isso precisa ser revertido. É inadmissível. Não sairemos das ruas se isso não mudar”.
Impactos fora do país
A sessão pública da UPMS reservou também espaço para a manifestação de um dos participantes internacionais da oficina (vindos do Equador, de Angola e de Moçambique). O moçambicano Jeremias Vunjanhe, da União Nacional de Camponeses (UNAC), disse apostar nos diálogos internacionais como forma de fortalecer a “dignidade humana” entre os povos. De acordo com ele, as discussões ao longo do fim de semana revelaram um quadro diferente da “imagem do Brasil” como um exemplo bem sucedido que é “vendida” na África.
Para Jeremias, a obsessão do governo brasileiro por uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas tem impulsionado intervenções no continente que rompem com uma tradição cooperativa histórica entre países. Ele questionou particularmente a atuação de empresas privadas brasileiras (muitas vezes com financiamento público federal) em empreitadas fora do país que entram em confronto com direitos de povos e comunidades locais. Entre elas, citou explicitamente a mineradora Vale, que tem negócios espalhados em variados países africanos. Aos conselheiros do CNMP, clamou por uma maior responsabilidade do governo e das instituições brasileiras no que diz respeito a atuação não só da Vale, mas também de empreiteiras como Odebrecht e Camargo Correa, que “mancham a imagem do país” e que parecem não contar necessariamente com o “suporte do povo brasileiro”.
Outro alvo de críticas do jornalista moçambicano – que chegou a ter, no contexto da Rio+20, a sua entrada no Brasil impedida no ano passado – foi oProSavana. Programa de grandes dimensões de estímulo ao agronegócio, o ProSavana, que tem em sua base capitais e entidades brasileiras e japonesas de fomento, afetará diretamente a vida de 5 milhões de pessoas. Indiretamente, o impacto do programa, que é repudiado pela UNAC, atingirá 17 milhões de camponeses. Diante de um governo que, no Brasil, se orgulha de ter feito com que 40 milhões de brasileiras e brasileiros tenham superado as condições de pobreza nos últimos anos, ele espera que haja internamente um intenso acompanhamento e uma discussão profunda sobre esses impactos externos que envolvam a sociedade e as instituições brasileiras. “Há um ditado que diz que ‘para cada problema africano, há uma solução brasileira’. Pode-se dizer que hoje ‘para cada solução africana, há um problema brasileiro’”, provocou.
Oficina e mensagem
Coube a Salete Camba, que atualmente está à frente da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) no Brasil, a apresentação da oficina de Brasília (DF) da UPMS – uma iniciativa organizada no âmbito do Projeto ALICE, do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (UC), com apoio do CNMP. Ela recordou que a UPMS foi idealizada pelo professor Boaventura de Sousa Santos a partir do Fórum Social Mundial (FSM) de 2003, em Porto Alegre (RS), com vistas a promover o interconhecimento entre protagonistas de movimentos e organizações sociais que enfrentam lutas diárias com acadêmicos e pesquisadores comprometidos na construção de “um outro mundo possível”. As oficinas consistem, portanto, de um exercício prático, por meio de uma carta de princípios e de uma metodologia construídas ao longo de anos, das concepções de “tradução intercultural” e “ecologia de saberes”, do próprio professor Boaventura.
A construção de histórias e processos comuns, destacou Salete, tem como objetivo fortalecer as diversas formas de atuação por justiça social (com olhar para aqueles que o educador Paulo Freire identificava como “esfarrapados do mundo”), em espaços autônomas ou institucionais. No tocante à oficina realizada na capital federal que reuniu dezenas de pessoas das mais distintas regiões do país e campos de luta, ela recolocou a necessidade de ruptura entre o molde de “direitos humanos” restritivos à uma pequena burguesia e a noção de “direitos humanos” como instrumentos direcionados a “bandidos”.
Em depoimento exibido na sessão pública, o professor Boaventura, que não pode participar da oficina internacional por motivos de ordem pessoal, chamou atenção justamente para a dimensão ampla de direitos humanos (“da terra aos direitos sexuais, da água à discriminação racial, de todas as questões que, no campo e na cidade, que estão sendo levantadas em todo o mundo, não apenas no Brasil”) adotada para o encontro. “Hoje a luta pelos direitos humanos exige que o Ministério Público tenha um papel ativo. Sabemos que há pressões contraditórias por parte de outros órgãos do Estado”, frisou.
“Estamos perante um modelo de desenvolvimento arrasador, que parece não cuidar das pessoas e apenas da rentabilidade de recursos no sentido de aproveitar esse ‘boom’ de recursos naturais”, colocou o diretor do CES/UC e coordenador do Projeto ALICE. “Se não for suficientemente ativo, o MP será responsável pelas frustrações de milhões e milhões de brasileiros. Se for ativo, será responsável pelas aspirações desses mesmos milhões e milhões de brasileiros. É uma instituição contraditória, como se sabe, que tem na mão uma parte importante por essas aspirações. Mas ninguém faz o papel dos movimentos, que são autônomos e lutam eles próprios por seus direitos”.
Abertura e aproximação
Na inauguração do ato, o conselheiro Jarbas assinalou que o CNMP foi criado em 2004 não somente como órgão disciplinar no exercício do “controle administrativo e financeiro”, mas também como instância para o planejamento da atuação do MP em nível nacional, especialmente através de projetos temáticos específicos. “Esse investimento alto não pode ser apenas para dentro da instituição”, comentou.
Depois das manifestações dos participantes da oficina da UPMS, o conselheiro Jarbas se disse “sensibilizado”. Para ele, a “elite institucional” do MP “não pode frear esse tipo de aproximação” com integrantes de base de organizações populares, isto é, “ouvir os movimentos sociais” é o “caminho certo”. Reconheceu que os operadores jurídicos acabam tendo, muitas vezes, “uma visão meio localizada” sobre as questões envolvendo violações de direitos humanos e que “dói” quando nota que o próprio órgão ainda reflete internamente desigualdades existentes na sociedade.
Ao final, além de defender as prerrogativas do MP frente às inúmeras propostas legais de retirada de atribuições do órgão, o conselheiro – que esteve acompanhado dos colegas titulares do CNMP, Antônio Pereira Duarte e Leonardo de Farias Duarte – externou ao público o convite para o I Encontro Nacional do Ministério Público com os Movimentos Sociais, marcado para os próximos dias 2 e 3 de dezembro de 2013.