Um de cada três hectares que governos da América Latina, África e Ásia concedem à exploração mineradora, agroindustrial ou florestal está em área indígena
Marcelo Justo* – Carta Maior
Londres – Um de cada três hectares que governos da América Latina, África e Ásia concedem à exploração mineradora, agrícola-industrial ou florestal se encontra em terras de comunidades indígenas. O projeto Munden, da organização internacional Direitos e Recursos, analisou cerca de 153 milhões de hectares em concessão, em um total de 12 países, cinco da América Latina (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e Peru), três da África (Cameron, Libéria e Moçambique) e quatro da Ásia (Camboja, Indonésia, Malásia, e Filipinas). A Carta Maior conversou com a consultora legal de Direitos e Recursos, a advogada brasileira Fernanda Almeida, sobre como é a situação concretamente no Brasil.
O projeto Munden fala de uma sobreposição de quase 33% entre a propriedade indígena e as concessões que se fazem para explorações de diferentes tipos. Como é a situação no Brasil?
Há pelo menos 689 terras indígenas no Brasil, que abarcam aproximadamente 240 povos indígenas e representam cerca de 13% do território nacional. Umas 128 estão em fase de identificação, ou seja, está se desenvolvendo um estudo antropológico para definir, entre outros fatores, os limites do território. 35 estão identificadas e necessitam que o estudo antropológico seja aprovado pela FUNAI, o órgão nacional responsável pelo processo de demarcação de terras indígenas. E há 460 terras que têm o processo de delimitação concluído. Mas também não se trata unicamente dos povos indígenas. Aí estão os direitos dos quilombolas, populações tradicionais de origem africana.
Nosso trabalho procura ver onde há sobreposição entre explorações concedidas e direitos indígenas ou de populações como os quilombolas. Há claros indicadores de que essa sobreposição existe e representa um risco. Isso acontece, sobretudo, nas áreas onde as populações não estão legalmente reconhecidas, o que não quer dizer que não haja conflitos em zonas onde há um reconhecimento legal.
Vocês dizem que a sobreposição de direitos indígenas e exploração econômica é uma fonte de conflitos não só para as populações originárias, mas para os próprios investidores que podem perder bilhões de dólares no processo. Pode dar exemplos?
Em nível mundial, calculamos que no setor agrícola há cerca de 5 bilhões de dólares de investimentos em terras que se sobrepõem com a propriedade indígena. Os investidores não costumam levar em conta que a oposição jurídica, civil e às vezes violenta à exploração econômica de um território pode ter impacto na rentabilidade. Essa oposição é cada vez mais frequente porque houve um processo de democratização a nível mundial que inclui um maior reconhecimento dos direitos dos indígenas e, entretanto, não aparece nos cálculos que se fazem para examinar o risco de investimento.
No caso específico do Brasil, há que levar em conta que é o terceiro exportador agrícola do mundo, o primeiro em açúcar, segundo em soja. A expansão que se deu recentemente na soja e no açúcar causou o deslocamento de produtores rurais e comunidades indígenas. Na soja, sobre um cultivo de mais de 42 mil hectares, mais de 7 mil estão em território sobreposto.
Em nosso estudo estimamos que os conflitos nas terras indígenas de Jatayvary, Guyraroka, Panambi-Lagoa Rica e Takuara levaram a uma deterioração do valor da produção de mais de 8 milhões de dólares. A cifra pode parecer menor, 0,2% da produção agrícola, mas há que levar em conta que se trata de um dos 13 territórios indígenas. Sobre o resto não temos os dados correspondentes.
Vocês afirmam que a exploração mineira, a agrícola-industrial e a florestal são os principais investimentos que entram em conflito com as terras de comunidades indígenas. Qual é a mais conflitiva no Brasil?
Há problemas nas três áreas, mas o lobby da agroindústria é muito forte. Esse lobby está tentando mudar os direitos já reconhecidos pela legislação. Em termos de legislação, o Brasil é bastante sólido a respeito à proteção de populações indígenas. Essa legislação é fruto da reforma constitucional de 1988 e todo o processo de democratização do país. Nesse processo se reconheceu uma grande parte do território nacional como pertencente às populações indígenas. O lobby agrícola sente que há demasiadas terras reconhecidas. Há algumas iniciativas que se estão discutindo neste momento que tratam de flexibilizar esses direitos. Por exemplo, há uma proposta de reforma da constituição para que, em vez do executivo, seja o congresso nacional o que delimite essas terras. Há também um questionamento na Corte Suprema sobre a legalidade da lei que regula os direitos dos quilombolas. E é possível que a justiça determine contra.
Na mineração deveria ser menos conflitivo porque o subsolo pertence ao estado.
A mineração em terras indígenas é uma exceção, uma vez que a Constituição permite a atividade mineradora em terras indígenas. Entretanto, a Constituição condiciona a atividade mineradora nessas áreas à aprovação de uma lei específica que regulamente este processo. Essa lei ainda não foi aprovada. O Brasil ratificou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho que demanda que o estado respeite o direito de consulta dos povos indígenas. Isso quer dizer que, antes que se outorgue uma concessão, a população indígena tem direito de opinar sobre essa concessão. Em caso de que não queiram, deve abrir-se uma negociação. Em geral, o governo tem a última palavra, mas esta pode ser questionada em nível legal. O fato de que a mineração tenha um direito em nível legal não quer dizer que não haja riscos econômicos se a população indígena não está de acordo.
Como se decidem esses conflitos no Brasil? Por negociação com intervenção do estado, pela via legal, pela violência?
Depende de cada caso. Muitas vezes a resolução é violenta, em especial na Amazônia, onde a presença do Estado em nível judicial é baixa. No estado do Mato Grosso do Sul, fronteiriço com o Paraguai e a Bolívia, foram assassinados cerca de 279 indígenas entre 2003 e 2011 em conflitos estimulados pelo crescente valor das terras com o boom dos preços de matérias primas. Mais especificamente em 2011 o relatório sobre violência contra povos indígenas no Brasil de 2011 falava de 32 mortos indígenas em 12 meses, 27 Guaraní-Kaiowá, 2 terena, 2 Guarani-nhandeva e 1 Ofaye-Xavante.
Essa presença de guaranis não surpreende porque vivem em áreas nas quais há maior densidade populacional e investimento, como Mato Grosso do Sul, fatores que aumentam o potencial de conflitos. Houve também casos de grande impacto midiático global, como a ameaça de suicídio massivo da população indígena Guaraní- Kaiowá ou em nível nacional, como a demanda dos produtores rurais por indenizações para abandonar a exploração no município de Iguatemi, em Mato Grosso do Sul em 2012.
No relatório vocês destacam que a América Latina está avançada em relação ao reconhecimento do direito indígena ao ser comparada com o que acontece na Ásia ou na África. Esse maior reconhecimento deveria facilitar uma resolução pacífica e legal dos conflitos.
Sempre há que ver caso por caso, porque se tratam de instâncias muito complexas, que geralmente envolvem simultaneamente a população indígena, a exploração privada, um órgão governamental e a justiça. Um bom exemplo deste tipo de resolução de conflito é o dos danos ambientais e morais sofridos pela comunidade indígena devido às plantações de Soja e Cana na terra Indígena de Guyraroká. O Ministério Público Federal iniciou uma demanda contra a FUNAI exigindo uma indenização de R$ 170 milhões. A FUNAI não cumpriu com seu papel de protetor dos direitos indígenas ao não impedir que se produzisse um dano ambiental e moral pela produção de soja e cana e foi imputada juridicamente por isso. A lei incentiva a participação do Estado como mediador na resolução de conflitos.
*Tradução: Libório Junior