A luta pelo território: o centro simbólico e real do Bem Viver. Entrevista especial com Paulo Suess

photoA teologia índia “luta pelo sobreviver, pela vida e pelo Bem Viver. O alvo da luta é a transformação do Estado neoliberal em Estado do Bem Viver para todos”, diz o teólogo

IHU On-Line – “O conceito de Bem Viver não é uma receita ou um manual de aplicação, mas um horizonte que nos faz caminhar, discernir e lutar pela redistribuição dos bens do Planeta (terra, água, ar) e pelo reconhecimento do outro e da outra, não em relações concorrenciais, mas de reciprocidade e gratuidade”, diz o teólogo em entrevista à IHU On-Line.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Suess esclarece que a “luta por terra e território é o centro simbólico e real do Bem Viver dos povos indígenas e, por conseguinte, também central para a ação evangelizadora da Igreja”. E acrescenta: “faz 30 anos que a CNBB, em seu Documento 26 (n. 248) sobre a ‘Catequese Renovada’, nos animou que, em obediência a Jesus Cristo e ‘sua mensagem de libertação e salvação’, devemos assumir a ‘tarefa crítica e profética diante das situações contingentes da História’. E isso ‘não consiste apenas em adesão a um credo ou princípios morais, mas também, e principalmente, em atitudes’”.

Suess ressalta que países como Bolívia e Equador têm uma proposta de superação das políticas “subordinadas aos projetos de hegemonia competitiva”, e incluíram em suas Constituições os conceitos de sumak kawsay e kechwa, ou seja, Bem Viver. Entretanto, ressalta, “o belo texto das Constituições se encontra escondido num Quartel General rodeado por um exército inimigo em cujos uniformes está estampada a sigla PEC (Projeto de Emenda Constitucional).

Também na Bolívia e no Equador o Bem Viver é utopia. Não é uma nova classe que chegou ao governo. O Patchakutik não aconteceu. Trata-se apenas de novos rostos a serviço da velha classe dominante. Também os governos de esquerda, às vezes com farda indígena, às vezes com macacão de operário, têm pouco ou nada a negociar com os pobres ou com os povos indígenas.

Em comparação com as ditaduras — mudou algo? Sim, mudou. Agora tudo é ‘legal’ e a alienação é geral. A marcha do Estado do Bem Estar ao Estado do Bem Viver é longa e dura; será a luta pelo pão para todas as bocas”.

Paulo Suess é doutor em Teologia Fundamental com um trabalho sobre Catolicismo popular no Brasil. Em 1987 fundou o curso de Pós-Graduação em Missiologia, na Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, onde foi coordenador até o final de 2001. Recebeu o título de Doutor honoris causa, das Universidades de Bamberg (Alemanha, 1993) e Frankfurt (2004). É assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi e professor no ciclo de Pós-Graduação em Missiologia, no Instituto Teológico de São Paulo – ITESP. Entre suas publicações, citamos Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são os aspectos centrais da concepção indígena do Bem Viver?

Paulo Suess – Os aspectos centrais da concepção indígena do Bem Viver podem ser resumidos com cinco palavras-chave: utopia, comunidade, harmonia, simplicidade e ruptura. O Bem Viver (sumak kawsay) é uma utopia, muito próxima à utopia do Reino de Deus que, em sua plenitude, é escatológica. A utopia é crítica ante a situação atual, com suas ideologias, falsas promessas e alienações e, como tal, não é um retrato de uma sociedade ao alcance de todos e todas aqui e agora, mas um dispositivo no imaginário da humanidade que faz as pessoas caminharem rumo a um futuro almejado e possível para todos e todas. Em doses homeopáticas e na simplicidade da vida cotidiana em comunidade, esse futuro já se revela na energia e na harmonia comunitárias, no viver como conviver e na ruptura (Patchakutik) com as patologias sistêmicas.

IHU On-Line – Os sete Encontros de Teologia Índia apontam para uma longa caminhada. Como foi a origem e a trajetória desses encontros?

Paulo Suess – Iniciamos essa caminhada com “Consultas Latino-Americanas de Pastoral Indígena”. Na época eu era secretário e logo depois assessor latino-americano do Conselho Indigenista Missionário – Cimi. Percebemos que o Brasil precisa caminhar em sua pastoral indigenista junto com os países nos quais os povos indígenas representam um peso populacional maior. Tomamos contatos com as pastorais indígenas dos outros países e, em 1983, em Brasília, realizamos a Primeira Consulta Latino-Americana de Pastoral Indígena, com a participação de 15 países. Seguiram outras consultas e realizamos cursos do Norte ao Sul do Continente que mais tarde cederam lugar aos encontros de Teologia Índia. Percebemos que o protagonismo da Pastoral Indígena deve ser cada vez mais dos próprios povos indígenas, e estes transformaram “nossa” pastoral indígena em “sua” teologia índia.

O primeiro Encontro Continental de Teologia Índia se realizou no México (1990) e trabalhou “A metodologia da Teologia Índia”; o segundo aconteceu no Panamá (1993) e refletiu sobre “A experiência de Deus nos projetos de vida de nossos povos”; o terceiro, na Bolívia (1997), teve como tema “Sabedoria indígena, fonte de esperança”; o quarto, no Paraguai, (2002), se colocou “Na busca da terra sem males”; o quinto, realizado no Brasil (Manaus 2006), dialogou sobre “A força dos pequenos, vida para o mundo”; o sexto foi celebrado em El Salvador (2009) e se discutiu a“Mobilidade humana, desafio e esperança para nossos povos indígenas”; e o sétimo encontro foi realizado, com a participação de 250 líderes indígenas, no Equador (2013), onde se aprofundou o tema “Sumak kawsay e vida plena”. O VIII Encontro Continental de Teologia Índia, provavelmente, vai ser celebrado na Argentina.

IHU On-Line – Quais foram as principais reflexões do VII Encontro Continental de Teologia Índia, no Equador?

Paulo Suess – As principais reflexões do VII Encontro Continental de Teologia Índia se encontram na “Mensagem Final” do evento, intitulada “A Boa Notícia de Pujilí”. Pujilí, perto de Latacunga, é o lugarejo onde se realizou esse encontro.

A Boa Notícia é a memória do Bem Viver dos povos andinos que faz sonhar e iniciar a reconstrução da vida como Vida Plena para todas e todos. A proposta do Bem Viver dá rumo às nossas lutas e une nossas heranças milenares num projeto comum. Nessa memória se tornam presentes os mártires indígenas que deram a sua vida para o Bem Viver das comunidades e para a recuperação da Terra Mãe, que está doente. Essa doença tem a sua origem nas estruturas do sistema dominante que transforma tudo em mercadoria: a educação e a saúde, a própria terra e a espiritualidade, a política e os governos. A “Mensagem” invoca a força curadora da sabedoria ancestral e a capacidade de produzir uma ruptura estrutural (patchakutik). Trata-se de uma luta entre vida e morte. Ou extirpamos o câncer que corrói a vida do planeta ou ele nos vai destruir a todos e todas. O Sumak Kawsay e o Evangelho fazem parte do mesmo projeto do Deus da Vida. Por fim, a “Mensagem de Pujilí” reivindica dos governos o reconhecimento de seus territórios ancestrais, de sua autonomia e autodeterminação; dos pastores pedem respeito à espiritualidade dos povos indígenas, defesa de sua causa como fez “nosso mestre Jesus” e mais participação dos leigos e das mulheres nos espaços de suas diferentes Igrejas.

IHU On-Line – Em que medida e por que a teologia tem de se preocupar com questões políticas e econômicas, a exemplo do que ocorre com a Teologia Índia na América Latina? Qual é o significado do resgate desta ideia no atual momento político?

Paulo Suess – No final do Vaticano II, o Papa Paulo VI foi questionado e, por alguns setores, até acusado de que o Concílio negligenciou a catequese, a doutrina e o anúncio explícito do Evangelho. Paulo VI, em seu discurso de 7 de dezembro de 1965, respondeu, o que vale, de uma maneira geral, também como resposta à sua pergunta: “Toda [esta] riqueza doutrinal [da Igreja] orienta-se apenas a isto: servir à humanidade, em todas as circunstâncias da sua vida, em todas as suas fraquezas, em todas as suas necessidades. A Igreja declarou-se quase a escrava da humanidade […]; a ideia de serviço ocupou o lugar central”. O Papa Francisco, por sua vez, advertiu, durante a Jornada Mundial de Juventude, no Rio de Janeiro, em seu “Encontro com a Comissão de Coordenação do Celam”, no dia 28 de julho de 2013, para uma Igreja que facilmente se transforma de uma Igreja servidora em uma Igreja controladora da fé (cf. CNBB, Papa Francisco, p. 95). A luta por terra e território é o centro simbólico e real do Bem Viver dos povos indígenas e, por conseguinte, também central para a ação evangelizadora da Igreja. E faz 30 anos que a CNBB, em seu Documento 26 (n. 248) sobre a “Catequese Renovada”, nos animou que, em obediência a Jesus Cristo e “sua mensagem de libertação e salvação”, devemos assumir a “tarefa crítica e profética diante das situações contingentes da História”. E isso “não consiste apenas em adesão a um credo ou a princípios morais, mas também, e principalmente, em atitudes” (ibidem).

IHU On-Line – Como a Teologia Índia e o conceito de Bem Viver podem ser aplicados na América Latina diante da conjuntura política e econômica atual?

Paulo Suess – O conceito de Bem Viver não é uma receita ou um manual de aplicação, mas um horizonte que nos faz caminhar, discernir e lutar pela redistribuição dos bens do Planeta (terra, água, ar) e pelo reconhecimento do outro e da outra, não em relações concorrenciais, mas de reciprocidade e gratuidade. Lutamos como servidores do outro e da outra para que ninguém precise mais ser servo ou serva. Nosso Bem Viver é resultado do Bem Viver do outro e da outra.

Em contextos de alienação generalizada, onde o futuro se tornou passado caracterizado pelo “pós” (pós-moderno, pós-histórico etc.), o Bem Viver “desafina o coro dos contentes“ (Torquato Neto) e resgata a esperança.

IHU On-Line – Em que medida a Teologia Índia propõe uma reflexão e alternativa à sociedade capitalista e pode ser uma alternativa ao conceito neoliberal de desenvolvimento e crescimento econômico?

Paulo Suess – O desenvolvimento econômico neoliberal impulsionou uma nova colonização pelo capital, pela ideologia do desenvolvimento, pelo consumo e pela competição. Procurou-se curar as patologias do desequilíbrio pelas patologias da acumulação, do crescimento desenfreado e da aceleração. O resultado é um mundo que compreende a alteridade como ameaça. Por isso, no Estado Nacional, cuja base é esse desenvolvimento que cooptou os sistemas legislativo, jurídico e judicial, não existe um lugar para os povos indígenas. Vida e reflexão dos povos indígenas são protestos contra a humilhação como consumidores. Seus projetos de vida, acompanhados pela solidariedade de setores da sociedade civil, são insurreição contra o absurdo e freios de emergência de projetos que confundem o lucro com a vida.

IHU On-Line – Quais são os expoentes da teologia índia? Como ela dialoga com a teologia cristã?

Paulo Suess – A Teologia Índia não é teologia de indivíduos, mas de povos. Precisamos distinguir três correntes na Teologia Índia cujas matrizes são diferentes: (a) matriz cristã, (b) matriz indígena e (c) matriz secular.

a) A primeira tem como matriz de fundo o cristianismo sem abandonar seus mitos e origens religiosas. Ela emerge no interior de várias Igrejas que assumem as culturas indígenas com seus mitos e ritos e procuram construir uma pastoral que se fundamenta num cristianismo inculturado e que sabe encontrar no passado indígenas muitos elementos que apontam para a vida em abundância anunciado por Jesus Cristo.

b) Uma segunda corrente está predominantemente orientada por sua matriz indígena, por sua religião e seus mitos, com um conhecimento social do cristianismo. Os povos dessa corrente não foram propriamente atingidos pela catequese cristã, porém permitem muitas coincidências espirituais para uma caminhada em conjunto.

c) Uma terceira corrente indígena (muitas vezes urbana) não tem um referencial explícito com o religioso e articula suas lutas pelo Bem Viver no interior de ideologias de partidos e ciências sociais (socialismo, marxismo, anarquismo, entre outros).

Nem sempre é possível nitidamente distinguir esses grupos. Há sobreposições, coincidências e distinções entre eles. Todos lutam pelo sobreviver, pela vida e pelo Bem Viver. O alvo da luta é a transformação do Estado neoliberal em Estado do Bem Viver para todos. É claro que as Igrejas cristãs têm mais afinidade e maior responsabilidade eclesial com o primeiro grupo, mas elas podem dialogar e se relacionar com todos sem intenções proselitistas e sem esconder a Boa Nova que é o fundamento da esperança de todas as atividades pastorais.

IHU On-Line – Que contribuições a teologia índia pode dar a temas fundamentais como a teologia cristã, a teologia moral, a escatologia e a eclesiologia?

Paulo Suess – Creio que a teologia da criação, o tratado da Santíssima Trindade, a pneumatologia, a escatologia e o ecumenismo podem-se enriquecer no diálogo com as diferentes correntes das Teologias Indígenas. Mas talvez a Igreja católica tenha antes que aprender — no dizer do Papa Francisco — a ser menos “alfândega” e mais “servidora” da fé dos povos indígenas.

Na V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (2007), por exemplo, o enviado da Congregação para a Doutrina da Fé não permitiu que no Documento de Aparecida aparecessem as palavras “Teologia Índia”. Nessa condição de negação da existência da Teologia Índia, as contribuições serão escassas e clandestinas.

IHU On-Line – Quais foram os resultados do Plano Nacional Para El Buen Vivir (2009-2013) do Equador e como a proposta de Bien Vivir está sendo desenvolvida na Bolívia?

Paulo Suess – Enquanto nossos governos estão competindo com os países com economias fortes, nas discussões constitucionais da Bolívia e do Equador irrompeu uma proposta que procura superar as políticas subordinadas aos projetos de hegemonia competitiva. Essa proposta, de origem kechwa, se articula em torno de um novo paradigma do “bem viver”, em kechwa, “sumak kawsay”.

Assistimos na Bolívia e no Equador, como em todos os nossos países que depois das ditaduras lutaram em Constituintes por transformações profundas, o mesmo fenômeno: o belo texto das Constituições se encontra escondido num Quartel General rodeado por um exército inimigo em cujos uniformes está estampada a sigla PEC (Projeto de Emenda Constitucional). O sistema capitalista, que é incapaz de produzir o bem viver de todos os cidadãos, se submeteu aos três poderes do Estado e transformou relações comerciais em relações sociais. Também na Bolívia e no Equador o Bem Viver é utopia. Não é uma nova classe que chegou ao governo. O Patchakutik não aconteceu. Trata-se apenas de novos rostos a serviço da velha classe dominante. Também os governos de esquerda, às vezes com farda indígena, às vezes com macacão de operário, têm pouco ou nada a negociar com os pobres ou com os povos indígenas. Em comparação com as ditaduras — mudou algo? Sim, mudou. Agora tudo é “legal” e a alienação é geral. A marcha do Estado do Bem Estar ao Estado do Bem Viver é longa e dura; será a luta pelo pão para todas as bocas.

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