Por Paulo Floro, do NE10, em MST
Os moradores do assentamento Junco nunca tiveram que lidar com tamanho mistério. Em um determinado dia de dezembro do ano passado todas as casas do vilarejo, localizado na zona rural de Maragogi, a 125 Km de Maceió (AL), perceberam que suas casas receberam um estranho carimbo de um avião vermelho, seguido de um número desenhado em estilo militar. As residências não possuem nenhum luxo. São de alvenaria, algumas decoradas com um pequeno jardim à frente, outras com um largo terraço. Em todas, esse símbolo rubro que traz mais perguntas que respostas.
Seu Antônio Mendes é um senhor negro e esbelto além dos 60 anos, sendo 14 deles vividos na comunidade de agricultores assentados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Ele é um dos moradores que foram surpreendidos com o avião carimbado no muro. “Não lembro quando chegaram aqui, mas acordei pela manhã e vi isso pintado na parede”, fala apontando a marca em frente à sua residência, localizada na única rua do Junco, sem calçamento. “O que dizem é que vem aí uma pista de aviação e por isso teremos que sair. Mas ninguém nos diz nada, apenas boatos”.
A pista que Seu Antônio se refere é o Aeroporto Costa Dourada, que será construído na divisa de Maragogi com São José da Coroa Grande, em Pernambuco, e faz parte do plano do Governo Federal de expandir a malha aeroviária do País. Há 270 aeroportos nos planos do Governo Dilma Rousseff, com investimentos avaliados em R$ 7,3 bilhões.
O Junco fica em uma área de 93 hectares repleta de coqueiros, próximo a uma região de forte turismo que é o litoral Sul de Pernambuco. O plano inicial do aeroporto, que estava a cargo da Secretaria de Infraestrutura de Alagoas (Seinfra) era de contar com uma pista de pequeno porte, para aeronaves de autonomia limitada ou voos de pouco fôlego. Com a chegada do plano federal houve uma ampliação da planta, o que afetaria ainda mais os agricultores assentados.
O aeroporto agora poderá contar com voos comerciais domésticos e internacionais, atendendo interesses comerciais e turísticos para a região. A pista de decolagem, que era de 2.100 metros, passa agora para 2.700. Para efeito comparativo, a pista do Aeroporto Internacional do Recife – Gilberto Freyre, o maior do Nordeste, tem 3.305 metros, segundo dados da Infraero. O Aeroporto Internacional Zumbi dos Palmares, na capital alagoense tem 2.600. Além das praias, o lugar é relativamente próximo ao complexo portuário-industrial de Suape, também em Pernambuco.
O assentamento Junco é um sossego. Fica em uma área bastante arejada, com ventos marítimos e é cortado por três rios. As 47 famílias que vivem no local ganharam a posse de lotes do terreno em 1999. Plantam ali mandioca, graviola, caju, manga, criam carneiros, bodes, algumas poucas vacas, além de produzirem doces artesanais. Além dos lotes (ou no linguajar rural “parcelas”), cada agricultor também possui alguns hectares de coqueiros, onde podem fazer extração ou mesmo criar animais.
Cícero Antônio dos Santos, presidente da Associação de Moradores do Junco, nem se lembra quando chegaram para pintar os aviões. Mas sabe que não quer sair dali. “Eles pintaram isso em nossas casas para mostrar que teremos que sair. Não posso dizer aos companheiros uma posição determinada. O Incra, a Secretaria em Alagoas, ninguém nos dá uma certeza do que acontecerá conosco”.
Cícero participou de algumas reuniões com órgãos responsáveis. Todos, segundo ele, bastante evasivos. “Eles falam que não devemos nos preocupar, que se for para sair seremos indenizados. Mas lutamos muito por isso aqui e só agora estamos conseguindo lucrar. Sustento mulher e três filhos de minha roça. Se for começar tudo do zero, muitos não irão conseguir sobreviver”.
Quitéria Gomes da Silva é uma das lideranças da comunidade e uma das responsáveis por incutir no povoado um sentimento de indignação em relação aos aviões. Integrante do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais e Pescadoras de Alagoas, ela luta desde 2004 por mais informações, quando surgiu o primeiro rumor de um aeroporto na região. “Eu digo pra todo mundo ‘minha gente, não achem que a indenização vai resolver a vida de ninguém”, conta. Ela nem estava naquele dia em que os misteriosos carimbos apareceram. Mas guardou na memória depoimentos de quem avistou as pessoas (ou a pessoa) que fizeram as pinturas. “Alguns disseram que eles chegaram à noite, com poucas pessoas na rua.
Um casal a serviço do Governo de Alagoas. Não pediram permissão a ninguém e foram já tacando o avião vermelho”, lembra. “Teve um companheiro que perguntou o que era aquele avião, então a mulher respondeu ‘é pra você pegar quando ele estiver descendo’”, conta, sem conseguir esconder a irritação. “Ainda ficaram abusando”.
“Pensam que demolir a casa de vocês é algo simples?”
Criada em 1972, a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) administra a maioria dos aeroportos do País. Ao todo são 63, além de terminais de carga e estações de tráfego aéreo. Em uma reunião realizada em outubro desse ano na Associação de Moradores do Junco, Cícero Antonio lembrou que a Infraero desconhecia a construção de qualquer aeroporto por ali. “Eles dizem que nunca ouviram falar de projeto algum”.
A empresa enviou um email à reportagem sobre o assunto, em que se resume a esclarecer: “informamos que a Superintendência Regional da Infraero Nordeste desconhece qualquer projeto ou obra em andamento relacionados à construção de um aeroporto comercial no município de Maragogi (AL)”. A Secretaria de Aviação Civil, órgão ligado à Presidência da República, confirma a existência de uma planta, mas afirma que nada está totalmente certo.
“Ficam nessa conosco. Uns dizem que não devemos nos preocupar, outros falam que não conhecem nada do que estamos falando”, comenta Cícero. A reunião aconteceu com cerca de 15 pessoas. O objetivo era mostrar um vídeo feito por um cinegrafista independente chamado “Justiça Para O Junco”, postado dias antes no YouTube. Após isso foi debatido quais serão os próximos passos para conseguir mais informações sobre a situação.
O sentimento da maioria era de ansiedade. Outros se mostravam desanimados e contavam planos B como montar uma oficina, se mudar para a cidade… Em determinado momento um morador levantou-se e se retirou. Ao chegar à porta retornou e soltou: “Não adianta tanta conversa. Não já sabemos o que temos de fazer? Entrar na Justiça e cobrar uma definição”.
Ficou com metade do corpo para fora antes de soltar tudo o que tinha de dizer, como se quisesse mostrar que não estava interessado em réplica de ninguém. Militante do Fórum Suape, Ednaldo Freitas participou do encontro para falar da experiência que sua comunidade no Cabo de Santo Agostinho, no Litoral Sul de Pernambuco, vivenciou com as remoções que ocorreram por causa da chegada das indústrias naquela área. “Gente, vocês pensam que demolir a casa de vocês e pagar uma indenização é algo simples? Temos companheiros que hoje estão vivendo de doações por que o que ganharam não foi suficiente para começarem tudo de novo”.
Quitéria conta que o destino incerto já começa a afetar a produtividade dos agricultores. “Muitos perderam a vontade de plantar, de comprar caixas para criar abelhas, de fazer doces. Tem gente que nem vai mais na feira de São José [da Coroa Grande, município vizinho]. Eu fico tentando fazer com que ninguém desista”. Do lado de fora da associação, Seu Antônio Mendes diz que não tem mais força para ir a outro lugar.“Essa terra é um paraíso pra gente. A água é boa, o solo também. Sabe quanto tempo demora para um pé como a bananeira ‘aturar’ e dar frutos? Uns oito anos. Aí a velhice vai se aproximando”.
Ao final da reunião, um agricultor chamado Moisés nos levou até uma enorme área com coqueiros e animais pastando. “Minha situação aqui é diferente das demais. Eu sou aposentado e tenho algum dinheiro. Não quero sair daqui, mas se tiver que ir embora não vou sofrer feito essa gente. Muitos aqui comem apenas farinha no almoço. Vivo com minha mulher e filhos na minha parcela, no maior sossego, é muito bom morar aqui”. Moisés é um senhor branco, veste botas de borracha e uma bonita camisa de botão amarela, parecendo mais um fazendeiro que um posseiro. “Comprei minha parcela de outra pessoa que vivia aqui. Compartilho da luta de todos e dou todo o meu apoio, mas evito emitir opinião para não causar nenhum estresse”.
“Vocês estão apreensivos à toa”
O órgão mais inteirado do assunto até aqui, a Secretaria de Infraestrutura de Alagoas, foi categórica ao afirmar. “Eles estão apreensivos à toa”, disse Roberta Rosas, superintendente de transporte e logística do órgão ao telefone em seu gabinete. “Já cansei de dizer que não sei quem pintou os aviõeszinhos na casa das pessoas. Estive na comunidade mais de uma vez para dizer que não tivemos a ver com aquilo”. Segundo Roberta, o projeto do aeroporto é de 2004. Nessa primeira planta a construção não afetaria a casa de nenhum assentado. “Existe uma possibilidade de ser feita uma ampliação, mas foge da minha competência”, diz alongando as sílabas para reforçar a entonação de “poooooo-ssibilidade”.
O espaço, lembra Roberta, fica em uma área cedida ao Governo Federal pelo Incra. Em 2004, o então superintendente do Incra, Gino César Meneses, e o prefeito da época, Antônio Lira Bezerra, assinaram um contrato de cessão para construção do aeroporto. No entanto, tanto o Movimento de Mulheres quanto a Associação do Junco dizem desconhecer a assinatura de qualquer documento. “Só se tudo foi feito de boca”, diz Cícero.
Quitéria vai além: “forjaram o documento. O prefeito chegou até a dizer em uma rádio de Maragogi, que doamos nossas terras ao governo. Foi assim que ficamos sabendo”. Os moradores solicitaram formalmente a apresentação desse documento usando a Lei da Informação (Lei nº 12.527/2011), sancionada pela presidente Dilma Rousseff e já regulamentada em alguns Estados, como é o caso de Alagoas. O prazo de 20 dias venceu nessa quinta-feira (31) e o contrato de cessão não foi apresentado.
“Eu não posso fazer nada se o Incra cedeu a terra deles ao Governo Federal. Agora isso foge das minhas competências”, diz Roberta. “Desde que o projeto passou a fazer parte do plano de ampliação de aeroportos, eu não posso mais responder por essas questões”, explicou. Em nota enviada a pedido da reportagem, a Secretaria de Aviação Civil deu um posicionamento confirmando a construção do aeroporto na área, mas disse que o projeto ainda está na fase de análise.
“O aeroporto de Maragogi faz parte do Plano de Aviação Regional, que prevê a reforma ou construção de 270 aeroportos no País, com investimentos de R$ 7,3 bilhões. Neste momento, o Banco do Brasil, contratado pela SAC para fazer os estudos de viabilidade, está visitando as localidades para definir as obras necessárias e possíveis locais para abrigar os aeródromos. É importante destacar que não está definido onde será o aeroporto de Maragogi. Os estudos de viabilidade devem ser finalizados até o final de 2013.”
Já o Incra disse que iniciou recentemente uma estratégia para contactar novamente todos os órgãos envolvidos com a construção. “Queremos encontrar uma solução para que nenhuma família seja afetada e que não haja nenhum tipo de perda”, disse o responsável pela comunicação do órgão, Adail Barros.
“Mesmo se for necessário que todos saiam da área, iremos realocá-los em uma outra terra para continuarem produzindo. Será feito um trabalho conjunto com o governo de Alagoas”. Eles não sabem nada sobre quem pintou os aviões na parede. Eles também não responderam sobre a assinatura de um contrato de cessão de terrenos, que é negado pela maioria dos moradores.
“A pintura dos aviões foi um ato extremamente desrespeitoso com a comunidade, por que não informaram o motivo nem seu significado”, disse a gestora de projetos da ActionAid, Daiane Dultra. A ONG presta uma assessoria jurídica aos moradores para obterem acesso à informação. “A comunidade do Junco conquistou o direito de estar nessas terras e também tem o direito de escolher se quer ficar ou sair de lá. É preciso que haja transparência e diáologo”.
Daiane auxiliou na construção de um ofício que foi enviado para a Prefeitura de Maragogi, Infraero, Incra, Cetran (o Conselho Estadual de Trânsito) e para o Ministério da Aviação Civil. Vencido o prazo da lei de informação, nenhum deles se manifestou. “Defendemos a transparência nos processos de decisão assim como a participação social, que são princípios muito importantes para uma governança democrática.”
Há também um ofício específico enviado ao Instituto do Meio-Ambiente de Alagoas, o IMA. Nele é questionado o impacto ambiental de uma construção desse porte e o destino dos moradores com o funcionamento. Há muitas dúvidas sobre como seria a vida dos animais com a subida e descida de aviões e também o acesso aos lotes de plantio e escoamento da produção do Junco. Procurada pela reportagem, o IMA não retornou as ligações e emails.
“Lutamos muito para estar aqui, você nem sabe”
A grande maioria dos assentados do Junco viviam em Barreiros, na Zona da Mata Sul de Pernambuco, na usina de mesmo nome, que foi desativada em 1990. Nesse período, o lugar era ocupado por diversas famílias, que ainda tentavam tirar dali algum sustento. Em 1997 um grupo de pessoas procurou o Movimento Sem-Terra para que os agricultores pudessem fazer parte do programa de reforma agrária, articulado pelo Incra.
“Estávamos passando fome quando, enfim, conseguimos uma área de coqueirais em Maragogi”, lembra Quitéria. “Éramos quase duas mil pessoas, mas o espaço no Junco deu apenas para 47 famílias”. O primeiro grupo chegou em 1997, mas a posse veio apenas em 1999. “Nesse meio tempo ficávamos morando em lonas, na lama. O próprio Incra organizava nosso despejo. Íamos para a beira da estrada esperando alguma decisão, mas estávamos todos esperançosos. Foi quando finalmente conseguimos o documento de nossos lotes e nos instalamos”.
Após a definição do local, os moradores levantaram casas de alvenaria, uma pequena associação e uma casa de farinha. Há ainda na pequena vila do Junco uma igreja evangélica. Tudo está marcado com os aviões vermelhos. No mesmo ano em que chegaram, começaram o cultivo e puderam contar com ajuda do Banco do Nordeste, que financiou a compra de insumos e material para uma infraestrutura básica. Alguns compraram carneiros e gado. A maioria iniciou fruticultura, sobretudo banana e graviola, ou raízes como batata e mandioca. Os produtores conseguem comercializar o que vendem na feira de São José da Coroa Grande ou na Feira da Reforma Agrária, que acontece em Alagoas. Há ainda produção de merenda para escolas do município e venda de doces. “Lutamos muito para estar aqui”, conta Quitéria. “Só não sabemos o que vai acontecer daqui para frente.”
Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.