A canoa do tempo, por José Ribamar Bessa Freire

cocarTaqui Pra Ti/ D24am

Estou em Florianópolis, convidado pela Universidade Federal de Santa Catarina para ministrar um curso de Literatura Brasileira para 36 índios Guarani, Kaingang, Xokleng/Laklãnõ, alunos do curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. À noite de quinta-feira, com Rivelino Barreto, Tukano, fizemos parte de uma mesa organizada pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social para discutir questões relacionadas às línguas indígenas e às traduções das narrativas ameríndias.

Durante o debate, respondendo a uma pergunta, lembrei um fato que ocorreu em janeiro de 1985, durante outro curso que ministrei em Boa Vista (RR), em parceria com Carlos Araújo Moreira Neto, para 60 índios Makuxi, Wapixana, Taurepang, Ingarikó e Yanomami. Nós dois ficamos impressionados com a memória deles. Fizemos um grande círculo e perguntamos a cada um o que sabiam de sua história. Quase todos eram bons narradores, falaram com riqueza de detalhes da história de Roraima, relatando fatos ocorridos desde os primeiros contatos com o colonizador no séc. XVIII.

Acontece que a memória oral vai passando de pai para filho, através de mecanismos que garantem a fidelidade da transmissão. Como esclareceu o índio Kalé Maxacali, de Minas Gerais,  “meu pai contou pra mim, eu vou contar pro meu filho. E quando meu filho morrer? Ele já contou para o meu neto. E assim ninguém esquece”. No entanto, um Wapixana esqueceu. Declarou que desconhecia os fatos históricos narrados por seus colegas e contou porque a cadeia de transmissão foi rompida.

O Wapixana de nossa história foi educado em Boa Vista por uma família brasileira e só retornou à aldeia quando tinha 18 anos. Portanto não havia aprendido a língua Wapixana e tinha perdido a possibilidade de se comunicar com os velhos que não falam português. Refletindo com eles sobre esta situação, estabeleci uma analogia. Para se deslocar no espaço amazônico e ir de um lugar a outro, é necessário uma canoa.  Da mesma forma, para se deslocar no tempo precisamos da língua. Foi aí que o Wapixana fez a pergunta: “Quer dizer que a língua é a canoa do tempo?”.

Usei a metáfora no capítulo de um livro publicado em 1992, onde foi sinalizado que a historia ocidental, da qual a brasileira faz parte, desdenhou desde seu início qualquer documentação verbal que não fosse escrita, padronizando este traço e universalizando o seu modelo de confiabilidade nos documentos escritos, fazendo extensiva esta qualidade ao “resto” do mundo que foi encontrado no processo colonizador.

Durante muito tempo, a historiografia considerou os povos ágrafos como “povos sem história” ou “pré-históricos”, devido à falta de “literacidade”, isto é, de uma prática sistemática de leitura e escritura. As sociedades de memória oral foram também consideradas sociedades pré-lógicas que, não dominando a escrita, não tinham o saber. Argumentava-se que, na ausência de documentos escritos, as pistas que existe são frágeis para o levantamento da história desses povos. Quanto à tradição oral, ela não era digna de credibilidade. Portanto, sem fontes escritas, não há história, não há saber.

A apropriação pela atual sociedade brasileira do saber indígena, transmitido de uma geração a outra através da tradição oral, tem sido obstaculizado pela ignorância, o despreparo e até mesmo o desprezo mantido em relação às línguas e cultura indígenas. O preconceito etnocêntrico não nos tem permitido usufruir desse legado cultural acumulado durante milênios. É um especialista em biologia, citado por Lévi-Strauss em O Pensamento Selvagem, que chama a atenção para o fato de que muitos erros e confusões poderiam ter sido evitados – alguns dos quais só muito recentemente retificados – se o colonizador tivesse confiado nas taxonomias indígenas em lugar de improvisar outras não tão adequadas.

O desaparecimento nos últimos cinco séculos de mais de mil línguas indígenas no Brasil significaram uma queima de arquivo, cujos estragos podem ser ainda minimizados. Como observa Darell Posey, “com a extinção de cada grupo indígena, o mundo perde milhares de anos de conhecimento sobre a vida e a adaptação a ecossistemas tropicais”.

Lembrei ainda que em abril de 1985, a Agência Estado de São Paulo divulgou notícia publicada nos principais jornais do país sobre a morte de uma criança e a intoxicação de mais quinze pessoas no bairro Vila Nova, na periferia de Porto Alegre (RS), por haverem comido mandioca, furtada de uma horta. O então secretário de Saúde e do Meio Ambiente, Germano Bonow, informou que “todas as semanas há casos no Rio grande do Sul de intoxicação leve provocada pela ingestão de mandioca, por pessoas incapazes de distingui-la do aipim.”

A mandioca foi domesticada pelos índios há quatro mil anos, segundo hipóteses dos arqueólogos. Durante pelo menos quatro milênios, através de experimentação genética, os índios vêm diversificando e enriquecendo a espécie. Só na região do rio Uapés (AM), entre os índios Tukano, Chernella (1986) identificou 137 espécies cultivares diferentes. A preservação, o controle e as técnicas de cultivo e extração do veneno da mandioca vêm sendo transmitidos eficazmente pelos horticultores indígenas através da tradição oral.

Esse episódio evidencia a quebra de elos na cadeia de transmissão oral. Ele revela como, em conseqüência, a sociedade brasileira deixou de se apropriar de um saber milenar, útil para a sua sobrevivência, sem que a escrita substituísse essas funções para amplos setores da sociedade nacional. E nos coloca algumas interrogações sobre a vigência da tradição oral para os povos indígenas que hoje vivem no Brasil.

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