Por Daniel Gomes, Globo Esporte
Guilherme dos Santos é tímido. Quando conversa, poucas vezes mira quem está na sua frente, e o olhar se inclina sobre o chão. As respostas são rápidas, com poucas palavras. A timidez é facilmente notada, mas quando o tema é racismo, o jovem de 19 anos, natural da comunidade quilombola Chã dos Negros e volante da Acadêmica Vitória-PE, time que está nas semifinais da Série A2 do Campeonato Pernambucano, se transforma: fala com propriedade, embora desconheça as causas de esse tabu ainda existir. O preconceito racial sempre fez parte de sua vida. Tanto é que o jogador recém-profissionalizado nem é conhecido pelo próprio nome. O apelido é mais forte: Escuro.
Foi quando começou a se interessar em se tornar jogador profissional que Escuro esbarrou nas primeiras barreiras do preconceito. Certa vez, quando tinha 12 anos, foi jogar um campeonato na cidade de Passira, no agreste de Pernambuco, a convite dos amigos que fez em outros distritos próximos à comunidade quilombola onde mora. Topou na hora. Pagou a inscrição, mas logo depois foi alertado pelos próprios colegas de que não poderia mais jogar.
– Me disseram para pegar o dinheiro de volta, e eu não entendi nada. Aí eu insisti muito, e um deles acabou soltando. O dono do time lá que eu ia jogar não me queria porque eu era negro. Aceitei, peguei meu dinheiro, mas fiquei curioso para ver quem era esse cara – disse Guilherme, que se surpreendeu ao ver o responsável pelo fim do seu sonho: o senhor, que devia ter mais de 50 anos, também era negro.
Clube da zona da mata de Pernambuco, foi o Vitória-PE que garantiu a continuidade de Guilherme no futebol. Também foi no time que o apelido “Escuro” surgiu. Depois de aprovado, ele descobriu que tinha um xará na equipe. Em um dos treinos da categoria juvenil, o treinador pediu para um dos atletas se chamar Guilherme para entregar-lhe o colete. Imediatamente, o menino retrucou: “Qual dos dois? O claro ou o escuro?”.
Depois de muito relutar, Guilherme dos Santos adotou o apelido – o qual já considera uma marca. Escuro tem orgulho da cor e fala “pelos cotovelos” sobre a importância de valorizá-la. Tudo isso é fruto de uma educação baseada na cultura negra aprendida em Chã dos Negros. O local é uma das 1.500 comunidades quilombolas existentes no Brasil e foi certificada como tal pela Fundação Palmares e pelo Ministério da Cultura no dia 1º de março de 2004. Assim como as demais, Chã dos Negros foi criada como ponto de resistência de escravos fugitivos e ex-escravos e hoje tem a defesa e a promoção da cultura afro-brasileira como um de seus ideais. O local, formado por vários sítios, é chamado por Escuro de “minha casa”.
Se Chã dos Negros é a primeira casa de Guilherme, a segunda é o Vitória-PE. O clube detém um único título: o de campeão da Série A2 do Campeonato Pernambucano (o equivalente à Segunda Divisão). Em 2009 e 2010, o time fez participações tímidas na elite do futebol local e ficou duas vezes em nono lugar. Em 2011, foi rebaixado, na lanterna. De volta à Série A2, fracassou na tentativa de um novo acesso e terminou em quinto lugar em 2012. A volta por cima pode ser dada este ano. Basta passar no mata-mata da semifinal contra o Timbaúba. Como duas equipes sobem, os dois finalistas vão para a Série A1 de 2014.
Escuro mora com a mãe, a irmã Jéssica Maria dos Santos, de 17 anos, e o sobrinho Dalvan Sales, de 12 anos. Ganha um salário mínimo no Vitória-PE, mas fica com pouco. Quase tudo que recebe, manda para a mãe. Assinou o contrato profissional neste ano, antes da disputa da Série A2 do Campeonato Pernambucano. Porém, foi justamente no início do ano que o sonho quase acabou. O menino tinha de trabalhar para ajudar em casa e cogitou desistir da vida de atleta. Só continuaria jogando se ganhasse por isso.
– Eu dava meus pulos para ganhar dinheiro. Juntava areia para ajudar em algumas construções e cortava milho. Ganhava pouco. Dependendo do serviço, nem chegava a R$ 50. Eu tinha que fazer algo. Até que o Maurílio (treinador do Vitória) quis contar comigo para jogar a Série A2. Eu pedi uma ajuda, e ele conseguiu que eu assinasse o contrato.
Maurílio, ex-atacante de clubes como Palmeiras e Grêmio na década de 90, ressalta as qualidades do garoto dentro e fora de campo.
– É um volante muito inteligente. É brigador dentro de campo e obediente taticamente, tanto que joga até de lateral-direito. Ele é adorado pelos companheiros por ser tratado como tem que ser, igual a qualquer um aqui. Se estiver bem, vai jogar. Se for mal, vai para o banco. A história dele é bacana, mas quero que ele renda dentro de campo.
Logo depois, em meio às brincadeiras, o comandante alertou.
– Você viu que ele está alisando o cabelo? Não está dando muito certo. O apelido dele aqui já é Zé Roberto (em alusão ao meia do Grêmio).
Preconceito de um lado, apoio materno de outro
Escuro nasceu em Passira porque em Chã dos Negros não existem hospitais. Nem farmácias há para quem precisa de um simples remédio de dor de cabeça. Logo após sua mãe receber alta, voltou ao sítio. O local faz jus ao título de comunidade remanescente de quilombos. Lá, a cultura negra é destaque e motivo de orgulho.
– Ainda hoje as tradições aqui estão vivas. Existe um grupo cultural de coco de roda, e a maioria das famílias ainda vive da atividade agrícola. Ainda lutamos para deixar vivas as raízes da nossa cor – disse Maria Martins, tia de Escuro e uma das líderes do centro cultural de Chã dos Negros.
Há apenas uma escola em Chã dos Negros, onde Escuro estudou até a quinta série. Depois disso, ele teve que ir para o distrito de Bengalas, que também faz parte de Passira, para terminar o ensino médio. Na sua comunidade – onde vivem pouco mais de 300 pessoas -, o futebol existe e resiste. Há apenas um campinho de traves de madeira, com um capim ralo apenas nas laterais. Era lá que a diversão se dava durante todo o dia depois das aulas.
– Vinham meninos de outros sítios próximos jogar aqui. A gente também ia para outros sítios. Muita gente jogava. Era só o que eu fazia, de tarde e de noite. Não tinha muito o que fazer se não fosse isso – relatou Guilherme.
Antes de se encaixar no Vitória-PE, Guilherme chegou a deixar Chã dos Negros para tentar a sorte na capital, defendendo o Náutico, após ser aprovado com outros dois garotos em uma peneira realizada na cidade de Limoeiro, distante 22 quilômetros de Chã dos Negros. Não ficou por muito tempo, pois, segundo ele, “a saudade de casa era grande”. Não se adaptou, mas queria insistir.
Embora conte algumas histórias, Escuro não se alonga. Diz que escondeu vários episódios de preconceito da mãe, Maria Júlia dos Santos, 58 anos, para não entristecê-la. E também acredita que ela esconde dele alguns casos parecidos. Diz não ligar para o racismo que acontece dentro das quatro linhas. Para Escuro, é uma forma de desestabilizá-lo dentro do jogo – e só. Fora de campo, é diferente. Machuca. Até hoje ele não esquece quando, na sexta série, um colega de turma o chamou de macaco.
Ele, que perdeu o pai quando tinha 10 anos, tem sua mãe como maior referência. Ao participar de uma entrevista pela primeira vez ao lado do filho, Maria Júlia se derreteu em lágrimas.
– Só Deus sabe o que eu passei por ele. Tudo para nós continua sendo difícil, e ele tem que dar o dobro para mostrar que é merecedor. Eu acreditei no sonho dele – disse a mãe em prantos ao lado do filho, que segurou as lágrimas.
Uma coisa ainda incomoda Escuro: o fato de o Brasil não possuir tantos técnicos negros. Para ele, existe explicação.
– Tudo de ruim que acontece com um time, culpam o técnico. Talvez muita gente não esteja preparada para criticar treinadores negros e pode deixar um preconceito velado aparecer. As críticas podem ser mais pesadas. Afinal, treinador é um cargo de chefia, né? Isso, poucos negros têm.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ulysses Levi.