A Pública – O indígenas tilcara de Angosto el Perchel brigam contra a burocracia argentina e os turistas, que “chegam e ficam” na sua terra
Por Jessica Mota
Liliana Canchi tem 42 anos, todos vividos à beira da Rota Nacional 9, ou RN 9, que corta a Argentina desde sua capital, Buenos Aires até o limite ao norte com a vizinha Bolívia. Há um ano foi eleita presidente da comunidade em que cresceram seu pai, seu avô e onde crescem seus filhos. Pela manhã, costuma manejar o preparo do mate para a família; um lenço azul lhe cobre os cabelos, o mesmo que no dia anterior lhe cobria e o mesmo que lhe acompanha em tantos outros afazeres.
“Como é meu dia? Fatal!”, solta. “Trabalhar na terra é muito sacrificante. Todo o tempo tem de se estar atento à sua agricultura. Faça calor, chuva ou frio, há que trabalhar”. Como Liliana, os outros membros da comunidade em que vive também são agricultores. Pequenos produtores de frutas e verduras, a serem vendidas em Tilcara, cidadezinha ali próxima.
Liliana é presidenta da Comunidade Indígena Angosto el Perchel, ao norte da Argentina, no departamento de Jujuy .Tanto a comunidade como a cidadezinha de Tilcara estão na região da Quebrada de Humahuaca, considerada Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO desde 2003 por ter, há 5 mil anos, abrigado a comunidade Chincorro, uma das mais antigas da Américas. Angosto el Perchel hoje conta com cerca de 70 famílias descendentes da etnia indígena tilcara, mas apenas 30 vivem ali permanentemente. As outras, que saíram em busca de trabalho ou estudo, voltam sempre no carnaval, festejado com música folclórica – o carnavalito, dançado com trajes que lembram os dos tradicionais gaúchos.
Aqui em Angosto as casas são de barro, como nas antigas roças do interior paulista. No quintal das casas há sempre cachorros e, nas poucas que são mais prósperas, também ovelhas e cavalos. Para os membros da comunidade – e para todos os indígenas – a terra onde trabalham, crescem e vivem é especial. A ela chamam Pacha, e sempre que vão realizar algum trabalho importante – seja a construção de uma casa ou uma conferência com estudantes – fazem o ritual de pedir permissão a terra, ofertando-a álcool, vinho e folhas de coca.
Há 20 anos, segundo o vizinho Raul Sarrama, realizar esse tipo de ritual à luz do dia era impossível por causa do preconceito que sofriam aqueles que o praticassem. Assim, eram realizados na calada da noite, nas madrugadas, às escondidas. Agora pode – mas nem tanto. “A Argentina nega a seus povos originários”, acredita Raul.
“As crianças têm vergonha de dizer que são indígenas. Querem se parecer com os brancos”, explica Noemi Perez, vice-presidente de Angosto el Perchel. A única arma que temos é a educação que damos em casa, os pais.
Há quatro anos a comunidade foi reconhecida como associação pelo Estado argentino. Mas o reconhecimento do território como indígena ainda está longe de acontecer. No povoado onde que todos trabalham duro a terra no verão para sobreviverem o duro inverno, a desconfiança em relação ao Estado argentino é grande. “É contraditório, não? Pedir permissão para o que é seu”, questiona Noemi Perez. Para tentar solucionar a questão, a comunidade contratou um advogado particular, que atua na capital do estado de Jujuy. As defensorias públicas, conta Noemi, não dão ouvidos às queixas. “Nos dizem pra voltar depois, amanhã, ou que falta tal papel, que está incompleto”.
Outro membro da comunidade resume tudo: “Nesse momento, estamos contra os agentes do governo, porque as leis já estão, mas não se cumprem”, diz Raul Serrama. Para ele, há problemas mesmo com os advogados particulares. “Os advogados que temos estão formados pelo direito argentino, não pelo direito indígena”, sentencia Noemi.
Sem o reconhecimento do território como indígena, os conflitos são constantes. A declaração da Quebrada como Patrimônio Mundial acirrou a briga por terras naquele pedaço da Argentina. Agora sobram os planos e projetos para empreendimentos como hotéis e pousadas por ali. “Os turistas antes vinham e iam. Agora vêm e ficam”, amarga Noemi. Muitos chegam e querem construir, outros tentam comprar as poucas terras. “Antes não havia isso. Cada um tinha respeito com os outros, sabia onde terminava suas terras. Mas nós não somos seres teóricos, somos práticos. Não vivemos à base de papeis”.