Por Rodrigo Haidar*, Revista Consultor Jurídico
Um grupo de estudiosos, formado por juízes, advogados, membros do Ministério Público e professores, lançou num manifesto criticando a pressa do Congresso Nacional em aprovar o projeto que cria o novo Código de Processo Civil. Segundo o documento (leia a íntegra abaixo), o país não precisa de “um novo CPC possível”, mas de um “excelente novo CPC”.
Caso contrário, defende o grupo, é melhor permanecer com o atual e “seus 30 anos de jurisprudência”. Para os estudiosos, a maioria das críticas que se faz ao Código de 1973, como a morosidade e a ineficácia das decisões judiciais, não são problemas causados pela legislação processual civil.
“As deficiências estruturais e de gestão do serviço público de Justiça, a formação excessivamente formalista e contenciosa dos operadores do Direito, o mau funcionamento do contencioso administrativo, a inoperância de agências reguladoras com poderes efetivos de fiscalização e punição, entre outras, são causas que pouco tem a ver com o direito processual civil e, eventualmente, poderiam justificar mais algumas alterações na legislação já vigente”, sustenta o grupo, no manifesto.
Leia o manifesto
A pressa e o projeto do novo Código de Processo Civil
O Brasil não precisa de um bom Código de Processo Civil. Isso ele já tem. O CPC/73 é elogiado instrumento legislativo. E com as reformas ocorridas durante os últimos 30 anos, ainda cumpre bem o seu papel de disciplinar o processo civil (lato), instrumento maior de solução dos conflitos.
A maioria das críticas que são dirigidas ao CPC/73 (morosidade da Justiça, ineficácia das decisões judiciais etc.), na verdade, não são problemas seus. As deficiências estruturais e de gestão do serviço público de Justiça, a formação excessivamente formalista e contenciosa dos operadores do Direito, o mau funcionamento do contencioso administrativo, a inoperância de agências reguladoras com poderes efetivos de fiscalização e punição, entre outras, são causas que pouco tem a ver com o direito processual civil e, eventualmente, poderiam justificar mais algumas alterações na legislação já vigente. A distinção de tempo no julgamento entre as diversas unidades federativas do país demonstra como o mesmo Código pode ser mais ou menos efetivo.
Mas não foi esse entendimento que prevaleceu no âmbito do Congresso Nacional. Por lá se processa desde 2009 um projeto de lei que, mesmo sustentado em premissas puramente empíricas (sem nenhum dado estatístico fomentador das soluções apresentadas), pretende introduzir no Brasil um novo Código de Processo Civil.
Se é, portanto, para termos um novo Código de Processo Civil, que ele seja ótimo; que supere as expectativas; que seja modelo internacional de legislação; que homenageie a qualidade da doutrina processual civil brasileira e os grandes processualistas que temos (muitos deles, frise-se, participantes das comissões que elaboraram o anteprojeto ou assessoraram o parlamento na sua revisão); que projete o processo para os tempos do procedimento eletrônico; e que realmente traga novidades capazes de produzir resultados em termos qualitativos e quantitativos.
Essa nova e moderna legislação processual, contudo, não virá sem longo e profundo processo de debate. Debate esse, diga-se, que já se iniciou no âmbito acadêmico e do Congresso Nacional, mas que ainda não está maduro o suficiente para justificar a pressa com que alguns cobram a aprovação do projeto no Senado e na Câmara dos Deputados.
Não houve tempo bastante. A comissão de juristas nomeada para elaborar o projeto teve apenas seis meses para a árdua tarefa, realizando audiências públicas sem um texto definitivo para debater. No Senado, mesmo com a abertura de consulta pública via web, tudo aconteceu de forma muito rápida. Na Câmara, o trâmite está sendo mais longo, mas infelizmente não por conta do amplo debate do projeto, e sim pelas sucessivas trocas de relator, diminuição do ritmo do Congresso em razão das eleições municipais de 2012 e discussão centrada em apenas poucos artigos.
Sem dúvida alguma, o projeto do novo CPC, mesmo com algumas evoluções e involuções a partir do anteprojeto originário, traz grandes e promissoras novidades (simplificação dos ritos, incidente de demandas repetitivas, racionalização do sistema recursal etc.). Mas tem falhas (omissões e contradições) que podem ser sanadas (ou minoradas) caso haja maiores debates sobre o projeto (na Academia e no Congresso), preferencialmente à luz da sua versão final da Câmara (que, infelizmente, muda quase que semanalmente).
Abaixo, apenas para confirmar a necessidade da continuidade dos debates — e sem avançar criticamente sobre várias opções de fundo da versão atual —, apontam-se (apenas) algumas omissões e contradições identificadas na versão final do CPC/Câmara, apresentada no início de julho de 2013 (Relator Dep. Paulo Teixeira) — o texto pode ser acessado aqui.
(i) o texto — apesar de evoluir, nesse aspecto, em relação ao projeto original — ainda tem por paradigma os autos em papel, não obstante já ser uma realidade, em diversos juízos e tribunais, os autos eletrônicos. Como exemplos, (a) a previsão apenas de agravo “de instrumento”, ou seja, com a necessidade de extração de cópias e formação do instrumento a ser distribuído no tribunal (art. 1.030), (b) competir ao escrivão a “guarda dos autos”, que em regra devem “permanecer em cartório” (art. 152, IV e V) e ser dever dos patronos “restituir os autos” (art. 234), (c) ser possível às partes requerer “recibo de petições, arrazoados, papéis e documentos que entregarem em cartório” (art. 201), bem como ser vedado lançar “cotas marginais ou interlineares, as quais o juiz mandará riscar” (art. 202), (d) menção a “autos apartados” ou “em apenso” (arts. 69, II, 545, 638, 657, § 1º, 700, 717, 930, § 1º, entre outros) e (e) ausência de previsão de sustentação oral por videoconferência (art. 950), prática já adotada, por exemplo, no âmbito do TRF da 4ª Região.
(ii) exatamente por conta das críticas recebidas, o anteprojeto da comissão de juristas foi alterado no Senado para que a flexibilização judicial do procedimento fosse mitigada (dilatação de prazos e alteração da ordem de produção de provas). Contudo, nem no Senado e nem na Câmara (art. 136, VI), houve preocupação em se estabelecer critérios legais para a operação (devidamente sugeridos pela doutrina), sem os quais não há segurança e nem previsibilidade para a adequação formal. Pior, fixou-se que a dilatação de prazo só ocorra antes do início do prazo regular, ignorando que as vicissitudes da causa justificadoras da ampliação podem aparecer, justamente, após o início do prazo;
(iii) o projeto estabelece que o juiz, ao conceder, negar ou revogar a tutela antecipada, deverá justificar as razões de seu convencimento de “modo claro e preciso” (art. 299). A exigência tem tudo para se tornar anedótica. Pois ninguém cogitaria que nas demais decisões judiciais, o juiz não precisasse indicar de modo “claro e preciso” os fundamentos que sustentam seu pronunciamento;
(iv) o projeto não estabelece uma interface entre o incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Caso haja ação coletiva já ajuizada sobre a mesma questão discutida em um incidente, deverá ela ser também suspensa? E se a ação coletiva estiver em curso perante comarca ou seção judiciária fora da área de abrangência do Tribunal de Justiça ou do Tribunal Regional Federal? Qual das decisões, caso conflitantes, prevalecerá? Havendo, sobre a mesma questão, incidente e ação coletiva, há prevenção, conexão, continência ou prejudicialidade?
(v) o projeto, na última versão, admite o incidente de resolução de demandas repetitivas também para questão de fato (art. 988, § 9º). Em que situações poderá o tribunal decidir o incidente? Poderá o tribunal delimitar previamente as provas que devem ser admitidas para o livre convencimento do juiz em 1ª instância? Além disso, como compatibilizar esse incidente sobre questão de fato com os arts. 989, § 2º; 994, § 3º e 995 (que se referem apenas a “tese jurídica”, ou seja, questão de direito)? Caberá também recurso especial ou extraordinário com efeito suspensivo (arts. 998 e 999), ainda que para rediscutir matéria de fato (súmula 07 do STJ)?
(vi) a convivência da convenção de arbitragem e a incompetência relativa com a fase de conciliação não foram adequadamente tratadas. Haverá a fase de conciliação mesmo diante da incompetência relativa e/ou convenção de arbitragem (artigo 345, § 4o)? A incompetência relativa pode ser alegada em petição autônoma e como preliminar da contestação (artigos 341, 345, § 3o e 346, § 2o)? A articulação de incompetência relativa no prazo próprio de contestação é justificativa à isenção da multa pelo não comparecimento a audiência (artigo 335, § 8o)?
(vii) o projeto tinha por escopo restringir as hipóteses de interposição de agravo de instrumento para imprimir maior celeridade processual, mas na última versão contempla até mesmo situações que, no regime atual do CPC/73, são consideradas pela jurisprudência dominante típicas hipóteses de retenção. Confira-se, a título ilustrativo, o caso de indeferimento da produção de determinada prova (art. 1.028, XIII do projeto). Isso evidencia que as hipóteses de agravo de instrumento devem ser mais bem discutidas para, a um só tempo, assegurar celeridade, sem restringir de forma indevida os meios inerentes à defesa das partes;
(viii) a conversão da ação individual em coletiva contra a vontade do autor (art. 334) é uma solução a ser detidamente pensada. Será que o publicismo processual justifica esse ônus desmedido ao autor, de ver sua pretensão individual transformada em coletiva, com os consectários daí advindos?
(ix) a inexistência de preclusão para as questões suscitadas no andamento do processo (art. 1022), as quais podem ser livremente ressuscitadas no recurso de apelação é um tema sensível. Isso porque, por vezes, durante o andamento do processo, as partes se conformam com diversas decisões, as quais, entretanto, no insucesso da pretensão, poderão ser regurgitadas na fase de apelação (não obstante a concordância inicial). Essa resiliência de questões processuais não vai de encontro com a própria ideia de processo, de superação das fases e dos temas respectivos?
(x) o fim da ação declaratória incidental e a extensão dos limites objetivos da coisa julgada à questão prejudicial, presentes na versão do Senado e retirados no texto do Deputado Sérgio Barradas, voltaram à versão final do Deputado Paulo Teixeira (514, § 1º). A alteração na Câmara se deu exatamente em virtude de críticas da comunidade jurídica (conforme se vê do próprio relatório que antecede o texto, p. 282), mas foi revertida no texto final sem maiores debates públicos ou justificativas do relator.
O Brasil vive uma fase de reformas políticas, exigindo do Congresso Nacional dedicação quase que exclusiva a esses temas. Receia-se que, diante disso, não seja dada a atenção devida ao importante projeto do novo CPC, especialmente porque ainda há muito que aperfeiçoar.
Não queremos um novo CPC possível. Queremos um excelente novo CPC. Caso contrário, melhor permanecer com o atual e seus 30 anos de jurisprudência. Por que, então, tanta pressa?
Fernando da Fonseca Gajardoni. Doutor e Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP (FD-USP). Professor Doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da USP – Ribeirão Preto (FDRP-USP). Juiz de Direito/SP.
Andre Vasconcelos Roque. Doutorando e Mestre em Direito Processual (UERJ). Professor em cursos de pós-graduação. Membro do IBDP, CBAr e IAB. Advogado/RJ.
Luiz Dellore. Doutor e Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP (FD-USP). Mestre em Direito Constitucional (PUC/SP). Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Zulmar Duarte de Oliveira Junior. Advogado/SC. Consultor Jurídico do Estado de Santa Catarina. Professor. Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil.
Marcelo P. Machado. Doutorando e Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP (FD-USP). Professor da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Advogado/ES.
Vitor Fonseca. Mestre e especialista em Direito Processual Civil (PUC-SP). Professor de Teoria Geral do Processo. Promotor de Justiça/AM.
Bento Herculano Duarte. Doutor em Direito das relações sociais (PUC-SP). Professor da UFRN. Juiz do Trabalho/RN.
Daniel Penteado de Castro. Doutorando e mestre em Direito Processual Civil (FD-USP). Advogado.
Andrea Caraciola. Doutora em Direito Processual Civil (PUC/SP) e mestra em Direito Político (Mackenzie). Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Elie Pierre Eid. Mestrando em Direito Processual Civil (FD-USP). Advogado.
Lúcio Flávio Siqueira de Paiva. Mestre em Direito (PUC/GO). Advogado.
Marco Antonio Perez de Oliveira. Doutorando e Mestre em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da USP (FD-USP). Advogado da União/SP.
Carlos Augusto de Assis. Doutor e Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP (FD-USP). Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado.
Sérgio Luiz Monteiro Salles. Doutor em Processo pela Universidade de São Paulo (FD-USP) e pela Università di Roma. Ex-Promotor de Justiça e Advogado.
José Herval Sampaio Junior. Doutorando e Mestre em Direito Constitucional, Especialista em Processo Civil e Penal, Professor da UERN e ESMARN. Juiz de Direito/RN.
Adriano Caldeira. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Doutorando em Direito Político pelo Mackenzie. Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado.
Augusto Tavares Rosa Marcacini. Livre-docente, Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (FD-USP). Professor de Direito Processual Civil e de Direito da Informática. Advogado.
Fernando Rubin. Mestre em Processo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor de Direito Previdenciário e Processo Civil. Advogado
*Rodrigo Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.
—
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Rodrigo de Medeiros Silva.