Lá fora, nas ruas e nas praças, todos parecem saber o que não sabe Mariano Rajoy, não sabe seu governo, não sabem os defensores dessa política suicida aplicada a ferro e fogo com o pseudônimo de austeridade e o aplauso dos matadores do futuro: que quanto mais de aplica essa receita, mais se mata o enfermo. Que enquanto se salvam bancos e especuladores, num ciclo tão vicioso como obsceno, enterram-se gerações
Eric Nepomuceno
Na tarde da sexta-feira 28 de setembro o Banco da Espanha – o Banco Central dos espanhóis – apresentou o relatório de uma auditoria feita por uma empresa norte-americana sobre a situação bancária do país. O relatório indica o volume de dinheiro necessário para salvar os bancos espanhóis: 53 bilhões e 745 milhões de euros. A auditoria foi encomendada pela União Européia, pelo Banco Central Europeu e pelo FMI, que são os que ditam a política econômica do país. Alguns bancos terão de receber dinheiro urgentemente para não virar purê, outros não escaparão de ser diretamente liquidados.
Um dia antes – a quinta-feira, 27 de setembro – o governo de Mariano Rajoy havia divulgado sua proposta de orçamento enviada ao Congresso. Aumento de impostos, novos cortes, mais medidas restritivas. Os cortes chegam à casa dos 38 bilhões de euros, que serão destinados a pagar os juros escorchantes cobrados pelos compradores de títulos públicos espanhóis. Quanto às outras medidas, algumas foram tão restritivas que altos funcionários da Comissão Europeia se disseram surpresos, já que são mais ferozes do que as impostas pelo organismo ao governo espanhol.
As duas notícias – novos cortes drásticos no orçamento e mais bilhões para salvar bancos quebrados – receberam aplausos entusiasmados da Comissão Europeia, do Eurogrupo, do Banco Central Europeu, do FMI. Todos disseram, em uníssono, que são passos importantes para conter o déficit do governo e sobretudo para o reforço, a viabilidade e a confiança no setor bancário do país. O presidente do Eurogrupo, Jean-Claude Juncker, chegou a expressar sua satisfação ao constatar que as necessidades da banca espanhola são inferiores aos 60 bilhões de euros. É que o Eurogrupo havia previsto 100 bilhões, e a urgência ficou bem abaixo desse valor. Há, diz ele, uma cômoda margem de segurança.
Houve ainda cumprimentos entusiasmados do Banco Central Europeu e do Fundo Monetário Internacional, o FMI, que disse que as necessidades da banca espanhola serão atendidas para que seja construído um sistema financeiro mais sólido, que irá ajudar a reativar o crédito e apoiar o crescimento.
Não encontrei menção alguma a outros dados que essas notícias irão provocar. Por exemplo: o desemprego, que ronda a casa dos 25% e é o maior da Europa, poderá chegar facilmente a 27% da mão de obra no ano que vem. A retração do PIB, que segundo o governo deverá ser de 0,5%, seguramente será o triplo. As exigências da Comissão Europeia continuarão pressionando por novas medidas, a começar pela flexibilização das leis trabalhistas, que contribuam para afundar ainda mais o país no pantanal em que já se encontra. As manifestações populares deixarão, cada vez mais, de serem de protesto, para serem de ira.
É assombrosa a inépcia do governo espanhol, é assombrosa a frieza com que os que realmente mandam nos rumos do país tratam números e dinheiros como se tudo se resumisse numa contabilidade estrita cujo único objetivo é salvar os bancos.
Será que ninguém vê o que acontece nas ruas do país? Nas casas do país? Nas famílias do país? Será que ninguém vê o que acontece com quem tem menos de 30 anos e padece um desemprego que chega a 50% da população dessa faixa etária?
É impossível que não vejam. É impossível semelhante estupidez diante de uma realidade cristalina, de um quadro tão nítido.
O que era um furacão monetário de ventos ruins se transformou numa crise econômica que se transformou numa crise social que se transformou numa crise política que se transformou numa crise institucional – nessa velocidade, sem vírgula alguma de respiro. Agora, a Catalunha, região mais rica do país, com um PIB superior ao de Portugal, resolve se dar ares de grandeza e torna a falar, desta vez em voz alta, em declarar sua autodeterminação, que é uma maneira sutil de dizer independência.
Que país é capaz de enfrentar, de uma vez só, tantas crises desse tamanho? O sistema bancário está em crise, a fuga de capitais anda na casa de bilhões de euros, as contas públicas estão em estado crítico, o governo é governado do exterior e desprezado pela população. O estado de bem-estar social é, cada vez mais, de profundo mal-estar. Pouca gente se considera representada pelos políticos, há uma atmosfera espessa, pesada, carregada de fúria. Essa atmosfera rescende a cravo de defunto, a vela de velório ao lado do leito onde um país moribundo agoniza. E lá fora, nas praças e nas ruas, o que se vê é uma imensa multidão de olhos atônitos por não compreender como é que o país se empantanou tanto, de olhos irados por não compreender como é que deixaram a Espanha se transformar no que se transformou.
Lá fora, nas ruas e nas praças, todos parecem saber o que não sabe Rajoy, não sabe seu governo, não sabem os defensores dessa política suicida aplicada a ferro e fogo com o pseudônimo de austeridade e o aplauso dos matadores do futuro: que quanto mais de aplica essa receita, mais se mata o enfermo. Que enquanto se salvam bancos e especuladores, num ciclo tão vicioso como obsceno, enterram-se gerações.
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