Cidades abertas e fechadas

João Paulo

A proximidade das eleições tem trazido muitas discussões sobre que modelo de cidade queremos. Num contexto ideal, a campanha eleitoral dispõe ao eleitor visões diferenciadas de gestão, projetos para as várias áreas da administração pública e formas de condução política. Assim, cabe ao cidadão escolher, no leque que é aberto à sua frente, que tipo de sociedade ele deseja. Por essa perspectiva, desde que dadas as condições de plena transparência e de possibilidade de divulgação das diferentes propostas, a escolha se torna racional e objetiva, mesmo marcada por perspectivas ideológicas ou paixões políticas.

Dando sequência a essa lógica, uma boa campanha seria feita de apresentação competente de projetos, que permitissem ao eleitor comparar, julgar e optar pelo que mais se aproximasse de seu desejo e de seu cálculo de efetivação. Assim, os candidatos ou partidos mostrariam o que querem para a saúde, educação, trânsito, segurança etc.; apresentariam de que forma gerenciariam a máquina; como pretendem se relacionar com os outros poderes; e de que maneira sustentariam seus projetos. Tudo muito certinho. E falso. Eleição é um momento em que o cálculo racional se torna refém do comércio. Rompe-se a relação entre propostas e discurso: o campo não é do convencimento, mas da retórica; não da verdade, mas da propaganda.

Por isso, talvez em alguns momentos seja mais significativo balizar a disputa eleitoral por elementos simbólicos que propriamente objetivos. Sem deixar de lado as necessárias discussões acerca de projetos setoriais, de formas de gerenciamento, de diálogo com as instâncias de controle social – que tipo de sociedade queremos, como desejamos que ela se realize e quão democrática ela é –, podemos incorporar dimensões como a abertura, o sentimento de urbanidade e o respeito pelo outro. Além de competente e democrática, uma cidade precisa ser feliz. A leitura desse propósito não é difícil, já que se traduz em elementos que habitam nosso dia a dia.

Podemos pensar, por exemplo, se desejamos viver numa cidade aberta ou fechada. A convivência humana como valor é algo que sustenta as diferentes propostas. Os modelos para educação e saúde, por exemplo, só existem a partir de uma decisão anterior sobre o tipo de homem que se tem em mente quando se organiza o sistema. Pode ser o corpo que adoece aos pedaços ou a pessoa capaz de autonomia; talvez seja o jovem que é treinado para uma atividade sem crítica ou quem sabe aquele capaz de se expressar com liberdade e criatividade; uma cidade que acolhe a diferença e o sofrimento como campo da solidariedade ou que asila, separa, medicaliza e pune; um lugar de acolhimento e inclusão que faz tudo para manter a criança em contato com o patrimônio humano ou um território de julgamento de habilidades que pune com a exclusão os “derrotados”.

A mesma lógica da abertura e do fechamento pode guiar a leitura nas áreas de segurança, habitação, lazer, cultura e mobilidade. Uma polis que é também civitas não se traduz apenas em obras e propostas técnicas, mas no sentido que subjaz a cada uma dessas decisões, que de racionais não têm nada. Por trás de cada discurso técnico há uma sondável e compreensível intenção política. Muitas vezes, a política se traduz também em interesses econômicos e de privilégio de grupos.

É o que se vê, por exemplo, quando se criminaliza a questão social, como nas constantes ações de desocupação de áreas onde vivem famílias de sem-teto; quando se esquadrinha a cidade a partir do par centro-periferia, com sua insuspeita discriminação de classe; quando se dobra o preço de uma refeição no restaurante popular, submetendo a lógica da segurança alimentar pela do valor de mercado; no momento em que se loteia a cidade de acordo com interesse de patrocinadores ou empreendedores; quando se estanca o fluxo livre de pessoas em razão de uma lógica higienista e verticalizada; quando a defesa ambiental ou do patrimônio histórico é encarada como impedimento para os negócios.

O tema da abertura e do fechamento da cidade não é algo tão pacífico. É grande e, organizado o time das pessoas que querem estrangular a cidade da convivência. Tem gente que não gosta de gente, e já que é impossível viver sem elas no mesmo espaço, a orientação política decorrente desse fato é o esquadrinhamento do espaço urbano a partir de regras estritas. Uma cidade fechada é uma cidade segura, defesa, alienada, dividida, racional, na qual não cabem a liberdade, a igualdade e a fraternidade, para ficar apenas em valores do século 18. Em matéria de civilidade (que tem como raiz a mesma palavra que deu origem a cidade), como se vê, estamos quase três séculos atrasados.

Por isso tem sentido reforçar a defesa que Walter Benjamin faz em sua Rua de mão única: “Quem não é capaz de tomar partido deve calar”. O uso da palavra é sempre uma operação de discordância, um propósito de debate, uma vindicação da força do conflito como elemento norteador da política. Escolher essa ou aquela cidade para viver é tomar partido, fazer escolhas, defender projetos, aceitar o debate com a mesma convicção que se valoriza o diálogo. A defesa da elocução livre tem tudo a ver com uma cidade aberta. A segregação socioespacial, para a qual caminhamos, antecede o estágio do silêncio. Quem gosta de gente não teme o barulho das vozes dissonantes.

Muros 

A sociedade brasileira vive secularmente uma história de segregação. Como lembra Antonio Risério em A cidade no Brasil, “da segregação nascem as favelas, bairros desassistidos, carentes de infraestrutura urbana e de serviços públicos elementares. Os pobres são segregados, expulsos de determinadas zonas citadinas e confinados em outras”. A contrapartida desse processo foi a encampação, pela outra porção da sociedade, das regiões mais valorizadas da cidade, que passaram a atender os interesses das elites. Com isso, se operou a inversão que domina a lógica urbana brasileira: as melhores escolas públicas, os equipamentos de saúde, as vias de trânsito mais modernas, a concentração de segurança, os espaços de lazer, tudo isso se localiza nas regiões ditas centrais.

No entanto, a dinâmica da história fez com que o ímpeto segregacionista fosse ainda mais exacerbado, gerando enclaves fechados (como os condomínios, ruas, quistos urbanos, bairros privativos), que radicalizam a exclusão e implantam o apartheid socioeconômico. A melhor tradução dessa privatização excludente pode ser observada nos shopping centers, que, ironicamente, ao mesmo tempo em que se furtam das vias públicas em nome de um espaço preservado, cercado e vigiado, nomeiam suas áreas internas de ruas e praças de alimentação. Não são ruas, mas canais de consumo; não são praças de alimentação, mas ajuntamento de má comida compósita pré-fabricada.

O que parece derivação de questões mais sérias, no entanto, se liga de forma intrincada com os processos políticos mais amplos. O modelo de sociedade-shopping indica que a divisão social, hoje, passa também pela concentração do entretenimento. Como observou o sociólogo Zygmunt Bauman em O mal-estar da pós-modernidade, a diversão hoje se liga exclusivamente ao dinheiro. Em outras palavras, a divisão social do lazer é o signo mais visível da divisão social como um todo. Ao tornar lazer em entretenimento (as pessoas se divertem comprando) e entretenimento em lazer (diversão boa é diversão que se adquire), a sociedade pós-moderna transformou a cultura em algo supérfluo, e não essencial, crítico, produtivo e capaz de gerar consciência. Um direito de cidadania, como a saúde, a educação e a moradia. A banalização da cultura pode não ser consequência de uma sociedade vazia, mas uma de suas mais poderosas raízes.

Abrir a cidade pode significar, entre outras coisas, recuperar sua dimensão cultural. Entre os propósitos envolvidos nesse horizonte estão a livre circulação da criatividade por todos os quadrantes, a ocupação de ruas e praças, o apoio às novas linguagens e experimentações, a democratização do acesso, a formação de um olhar mais crítico sobre o mundo. A cultura em nossa cidade, nos últimos anos, mostrou capacidade de mobilização, embora tenha que aperfeiçoar seus mecanismos de integração com outras lutas urbanas. Só uma cidade aberta é capaz de produzir cultura. A escolha não é para amanhã.

Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.

http://impresso.em.com.br/app/noticia/toda-semana/pensar/2012/09/29/interna_pensar,52222/cidades-abertas-e-fechadas.shtml

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