“Cidadania e direitos territoriais em disputa”, por Cândido Grzybowski*

Os territórios no Brasil são, hoje, palco de grandes disputas, que condensam questões de justiça e cidadania socioambiental. Os casos de Belo Monte e de Carajás são emblemáticos a respeito. No centro da disputa entre cidadania territorializada e capital externo em busca de valorização está o bem comum natural: direito coletivo para a cidadania, recurso natural para as empresas.

Embargos feitos pelo Ministério Público Federal levaram a Justiça Federal à suspensão e à paralisação das obras, tanto da usina de Belo Monte como da duplicação da ferrovia Estrada de Ferro Carajás.  A destacar o  acatamento pelo Ministério Público Federal da demanda dos atingidos, que se sentem totalmente ignorados e violados em seus direitos com o licenciamento para início das obras concedido pelos órgãos públicos federais competentes. Na disputa, de um ponto de vista democrático e de justiça social e ambiental, os direitos da população dos territórios impactados tendem a ser ignorados.  Esta é a questão política – para além da jurídica – que importa analisar. Afinal, é do país democrático, includente e sustentável que queremos construir que estamos falando. Não do mérito das obras em si, altamente questionáveis por sinal.

Para avaliar esta disputa na Amazônia – onde se decide muito do futuro que desejamos para nós, nossos filhos e netos – vale a pena pensar o significado dos territórios de uma perspectiva de justiça socioambiental.  Os territórios são espaços de vida humana, que combinam condições objetivas – suas características naturais e o que nelas foi fixado pela ocupação humana passada – com as ações humanas do presente. Não são espaços físicos em si, mas espaços geográficos dinâmicos, com história humana passada, dada, e história em construção pela ação atual. O uso humano do território qualifica a sua organização e lhe dá sentido histórico. Estamos diante do modo de ocupar e usar o espaço natural, o bem comum da vida, e de organizá-lo enquanto território humano, de vida, de cidadania, de democracia em construção.

Com a globalização neoliberal, o capitalismo transformou o planeta todo em seu espaço de valorização, ocupando os diferentes territórios segundo uma lógica de negócios e acumulação de riqueza sem limites. O capital que se investe num território determinado visa a sua própria valorização, determinada por interesses da grande corporação econômico-financeira exógena a ele. Nada a ver com a sustentabilidade da vida e da cidadania, com o bem viver, das populações que se identificam e vivem no e dependem das possibilidades do território. Num certo sentido, no contexto da globalização, reinventa-se e se radicaliza a colonização, a ocupação dos territórios, não para servir à vida das populações aí existentes e respeitando as suas condições objetivas, tanto naturais, dadas, como as criadas pelo sua cultura ao longo da história. Para o capital, os diferentes territórios, na Amazônia ou em qualquer parte do mundo, não passam de um diferencial de negócios, um plus na competição entre grandes empresas por mercados e por lucros crescentes. Para o capital, trata-se de ocupar os territórios com estratégias definidas fora e para fora.

Neste quadro, muda o caráter político da disputa no território e para o território. Ela adquire uma dimensão de direitos de cidadania que extrapola o território em si. Nos territórios – no caso aqui analisado, Belo Monte e Carajás – se materializam e agem contradições que, sem bem específicas, os fazem parte de algo de disputa cidadã mundial.  A sociedade civil local, com suas formas e dinâmicas locais, reage e luta contra o capital e a mercantilização do bem comum da vida que lhes é imposta, com os meios possíveis.  Nesta luta, em sua especificidade, está contida uma dimensão planetária, que a torna solidária com todas as diversas lutas mundo afora contra o capitalismo desterritorializado e sua lógica de racionalidade econômica de apropriação privada, mercantilização e domínio dos “comuns”.

As vitórias jurídicas obtidas pelos movimentos das comunidades indígenas contra o complexo hidrelétrico de Belo Monte e pelo Movimento de Justiça Nos Trilhos contra a Estrada de Ferro Carajás devem ser celebradas como reconhecimento de direitos de cidadania. Não são ainda uma inversão da lógica econômica e política, com profundas raízes no mundo empresarial e no poder político no Brasil, que aposta todas as suas fichas na conquista, colonização e valorização dos diferentes territórios em nome do crescimento acelerado, ideológica e politicamente apresentado  como desenvolvimento sustentável e em nome da justiça social. Nada mais falso do que tal justificativa no atual contexto, ainda mais passando pelo ordenamento jurídico do Estado de Direito que duramente conquistamos  após longa noite de trevas. O que se disputa em Belo Monte e Carajás tem a ver com cidadania, democracia e sustentabilidade com justiça social, não só dos diretamente atingidos, mas de todos e todas.

* Sociólogo e diretor do Ibase. Colunista do Canal Ibase.

Cidadania e direitos territoriais em disputa

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.