Em busca das próprias raízes

Olimpíadas de Londres de 2012. A ginasta norte-americana Gabby Douglas tornou-se a primeira negra a ganhar uma medalha na história da competição. Mas a imagem altiva e orgulhosa do feito conquistado foi maculada no dia seguinte: por meio das redes sociais, mulheres negras americanas criticaram de forma ferrenha o fato de a atleta ter os cabelos alisados. Segundo as internautas, Gabby deixou de representar verdadeiramente a comunidade afro-americana ao não deixar os cabelos naturais. Indignada e indiferente, a jovem atleta disse que as pessoas deveriam parar de se preocupar com coisas como a aparência do cabelo. “Não vou mudar por causa das mensagens”, disparou.

A indignação das mulheres negras americanas não é uma simples bronca, mas sim fruto de uma discussão que hoje é centro das atenções na comunidade negra do país do Tio Sam e também aqui no Brasil: deixar o cabelo natural é um ato necessário e de liberdade? E é sob essa ótica que centenas de mulheres estão deixando de lado o alisamento, pelo simples prazer de reconhecer-se da forma como realmente são.

Transição nas ruas e na cabeça
Para registrar esse momento, para muitos, histórico, uma espécie de pós-movimento Black Power – que ganhou o mundo entre os anos de 1960 e 1970 – uma jornalista e cineasta nascida na Nigéria, criada na Inglaterra e hoje vivendo no bairro do Brooklyn, nos Estados Unidos, resolveu ir às ruas e filmar os rostos felizes de quem aboliu a chapinha. No documentário “Transition”, Zina Saro Wiwa colheu depoimentos emocionados de mulheres que se cansaram dos produtos químicos, relaxantes e permanentes. A própria cineasta, durante o trabalho, passou também pela transição e confessou que tal experiência mudou a sua vida. Ver seu cabelo natural pela primeira vez em anos foi uma revelação para Zina.

Ao contrário do cabelo quebradiço que acreditava ter, ele era encaracolado e tinha uma textura deliciosa. O filme, narrado em primeira pessoa, ganhou patrocínio do New York Times, foi parar no site do jornal e, inevitavelmente, ganhou o mundo. “Fui obrigada a encarar o meu cabelo de verdade. Eu havia, intencionalmente, passado por uma transição. Isto significa trocar seu cabelo alisado por produtos químicos e voltar à textura naturalmente encaracolada. Por vários motivos, muitas mulheres negras nos Estados Unidos começaram subitamente a retornar à textura natural dos seus cabelos”, diz Zina que, em 1995, perdeu seu pai, Ken Saro Wiwa, assassinado na Nigéria por divulgar ideias de libertação do poder econômico baseado no petróleo, além de levantar discussões ligadas ao meio ambiente.

No Brasil: Movimentos, Estética e Referências
Concomitantemente, ares parecidos são respirados no Brasil. Basta perceber pelas ruas, festas e em ambientes de trabalho, que as negras brasileiras também estão assumindo o “seu crespo”. Coincidência? Para muitos, não! A palavra certa para definir este momento seria “referência”. O milagre da multiplicação dos cabelos crespos não está somente nas ruas, marca presença também nas redes sociais. É crescente o número de publicações de páginas no facebook veiculando imagens de lindas mulheres com seus fios naturais.

No Youtube, algumas dão aulas e dicas de como cuidar dos cabelos, quais produtos usar e tipos variados de penteados. “As mulheres estão se libertando, não acho que seja uma coincidência ou tendência, mas sim que estamos tendo referências”, explica a coordenadora do Ponto de Cultura Ilú Ònà “Caminhos do Tambor” e da instituição Ilú Obá de Min Educação, Cultura e Arte Negra Baby Amorim, que alisou seu cabelo por 30 anos e hoje passa longe, muito longe dos relaxantes. O fato de atrizes como Taís Araújo (capa dessa edição) e Elisa Lucinda aparecerem na telinha com cabelos naturais reforça a tese de Baby. É como a antiga cultura da comunicação por intermédio do som do tambor: independente da distância, vai de uma mulher para a outra.

Por aqui, as brasileiras também estão se agrupando para defender o cabelo natural e seus significados. Assim como o Dia Nacional do Cabelo Natural, nos EUA, no Brasil a questão não se pauta somente pela estética. A importância da atitude também entra em campo. Em São Paulo, por exemplo, foi criado o Manifesto Crespo, um coletivo de mulheres que nasceu exatamente a partir do porquê da existência do preconceito com o cabelo crespo. “Existe o desconhecimento sobre os cuidados e penteados com o cabelo natural. Quais são as referências familiares e de convivência que o negro cresce na sociedade brasileira?

Infelizmente, vivemos em uma sociedade que nega a nossa cultura e o nosso corpo. Tanto o homem quanto a mulher negra sofrem uma grande pressão para que se ‘enquadrem’ no padrão de beleza do cabelo que não pode ser crespo ou volumoso, para se inserirem no contexto conservador da sociedade, como o mercado de trabalho, por exemplo”, diz Lucia Demezue, uma das criadoras do coletivo, que organiza evento e promove debates sobre o assunto. “Depois dessa experiência com o Coletivo, me sinto cada vez mais com a responsabilidade de levar esta discussão e somar a minha história de vida com as demais, sempre apontando para caminhos com mais leveza e com novos olhares para o que é ‘belo’”, completa Demezue.

Na contramão
A modelo e atriz Pâmella Vidal sempre valorizou seus cachos, mesmo não tendo os cabelos tão crespos como gostaria. No dia a dia, faz de tudo para que seus fios tenham um efeito contrário daquele “padronizado” pela sociedade moderna.

“Sempre fui e sou, até hoje, suspeita para falar sobre cabelos cacheados naturais, acho que toda mulher, seja negra ou mestiça, deveria assumir seu cabelo do jeito que ele é, ao invés de usar megahair e escovas progressivas, tentando parecer o que não é. Pelo fato de eu ser neta de índio, branco, suíço e negro, não tenho os cachos tão crespos, porém, faço de tudo para que eles fiquem de uma forma que chamem atenção, mais cacheados, mais volumosos. Temos que assumir quem realmente somos e nos amar. Já recebi convite de uma famosa empresa de cosméticos para fazer uma campanha na qual eu teria que alisar o meu cabelo. O cachê era tentador, mas não aceitei. Não tem dinheiro que pague meus cachos!” – Pâmella Vidal, modelo e atriz de “Máscaras”, novela da Record

Cabelo crespo? Sim, senhor! E sem estereótipos
A atriz e produtora Mawusi Tulani, adepta há anos do cabelo crespo, também bebeu da fonte das referências. Mas para ela, a opção foi pessoal. Sua adolescência foi marcada por histórias contadas pelo pai, um militante da luta pelo direito dos negros. A resistência, a história e as revoluções negras fizeram com que a atriz aprendesse mais em casa do que na própria escola. Essas informações foram preciosas, anos depois, quando entrou na Escola de Artes Dramáticas da Universidade de São Paulo (USP), em uma turma de 20 alunos, em que apenas cinco eram negros.

“Eu me reconhecia nos meus parceiros. Criamos uma forma de resistência por meio da arte, do modo de se vestir e usar os cabelos”, conta a atriz. “Acho que estamos vivendo um momento de recuperar a autoestima, e isso é importante para, posteriormente, darmos passos mais firmes e confiantes perante a sociedade”, completa Mawusi.

Resistência, aliás, é um termo que, na verdade, nunca saiu do dicionário. Mas assumir o cabelo crespo, infelizmente, ainda traz uma série de conotações criadas na história recente do País e consequências são sentidas até na mais tenra idade. Qual criança negra nunca chegou em casa reclamando que o amigo da escola ou da rua o chamou de “cabelo de Bombril”?

Para o antropólogo Athayde Motta, a importância do cabelo, hoje, tem significado simbólico, mas será importante e bem-sucedida se conseguir desassociar a expressão “cabelo crespo” dos estereóticos que lhe são agregados. “O ganho de autoestima em nível individual é, sem dúvida, importante, mas se não contribuir para o fim dos estereótipos e da discriminação, terá um alcance limitado. O ato de assumir qualquer coisa também não pode ser posto ou transformado em compromisso vitalício”, explica.

Um dos maiores ativistas da história do movimento nacionalista negro, o jamaicano Marcus Garvey falou certa vez que “o povo que não conhece a sua história, a sua origem e sua cultura é como uma árvore sem raízes.” A frase mudou a vida, e, literalmente, a cabeça de muita gente por aí, como a jornalista e geógrafa Dea Rosendo, de Curitiba. Há quatro anos, ela usa o cabelo estilo rasta, bastante discriminado também por ser associado à falta de banho e uso de drogas, conceitos equivocados, já que o movimento, como é sabido, reflete em assumir as representações imbuídas nesse estilo, eternizado por Bob Marley, que exaltava a preservação das raízes negras. “Não tenho como colocar legenda ou nota de rodapé em meu corpo para exemplificar a história do cabelo rastafári ou o que ele significa para mim. Tenho de conviver com o olhar desconfiado de todos”, conta Rosendo, pontuando uma situação que certamente não acontece de hoje.

fonte: Raça

Em busca das próprias raízes

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