Mayron Régis
A Chapada se define pelos seus atributos, pela gente que nela vive e as formas de convivência que, ao longo de décadas, consolidaram-se. Ela também se define pela recusa. O Vicente de Paula e seu irmão recusaram as propostas que os fariam se mudar da Chapada para o baixão da comunidade de Carrancas, município de Buriti de Inácia Vaz. Os representantes do plantador de soja propuseram várias vezes aos irmãos uma troca de propriedades. Nessa troca, o Vicente e seu irmão entregariam os seus mais de 160 hectares de Chapada por pequenas frações espalhadas na parte baixa da comunidade de Carrancas. O senhor Adão, padrinho do Vicente, consentira com uma proposta dessas que, no final das contas, favorecera o plantador de soja. Este aumentou sua possível área de cultivo. Uma denúncia impediu que desmatasse a área e iniciasse o trato da terra. A área obtida pelo André é vizinha a área do Vicente.
Ao que parece, a existência de posseiros por toda a Chapada de Carrancas desagrada o sojicultor que pretende ampliar seus plantios de soja. Os posseiros estão no seu direito, contudo para o sojicultor sobre os direitos tradicionais de um posseiro ou de uma comunidade prevalecem outros direitos. A recusa do Vicente e de seu irmão incide diretamente sobre histórias de comunidades inteiras e posseiros que por conta da pressão de algum sojicultor ou de alguma empresa e da omissão dos agentes públicos declinaram de áreas de Chapada. Essas histórias se sucederam em Buriti, Brejo, Milagres, Santa Quiteria, Magalhães de Almeida, Barreirinhas e Santo Amaro. Nessas histórias se verifica um misto de relaxamento por parte das comunidades e dos posseiros que não exige uma atitude do Iterma e uma intromissão perniciosa por parte dos políticos da cidade e da região que os convencem a continuar na passividade.
A comunidade de Matinha preferiu fazer um acordo com o plantador de soja do que aguardar a ação do Instituto de Terras do Maranhão para regularizar a sua área de Chapada. A comunidade, assim como outras comunidades, vê os plantios de soja quase às portas das pessoas e é obrigada a coletar bacuri e quebrar coco de babaçu em áreas de Chapada de pequenos proprietários.
Com relação a sua situação fundiária, o Vicente agradece ao Gilson, funcionário do Incra e morador da cidade de Anapurus. O Gilson ajudou com a papelada para que o Vicente se firmasse na Chapada. Na parte da Chapada colada à área do Vicente mora o Francisco. Antes do André, o Elton operava com maestria a insegurança fundiária de várias áreas de Buriti e de Anapurus. Diz-se que vendeu essa parte da Chapada para o André. Esse tipo de negócio não tem nenhuma validade jurídica. Para contornar esse problema é que os cartórios foram criados. A documentação fornecida pelo cartório nega a história de quem quer esteja sobre aquela terra. Por isso é importante que a comunidade ou o posseiro se ampare em documentos como fez o Vicente.
O Estado se esmerou em atos administrativos que negam os direitos tradicionais de comunidades sobre os territórios onde elas exercem seu modo de viver. A negação praticada pelo Estado obedece a uma racionalidade técnico-administrativa. A negação nem sempre é direta. Ela percorre meandros do pensamento positivista e meandros da concretude moderna para que no final do processo já não haja mais como recorrer da negação. Os esforços no sentido contrário ao não reconhecimento dos direitos tradicionais caracterizam a relação Estado e comunidades e não o que está presente na Constituição Federal. Os atos administrativos do Estado indicam o grau elevado a que chegou a abominação das elites brasileiras para com os direitos tradicionais da sociedade.
Nesse quadro de “racionalidade”, o fato de comunidades recusarem o projeto desenvolvimentista pode parecer insensato ou até alienado. A adesão a esse projeto facilita as coisas para todo mundo e ninguém sai perdendo. Os laços não são cortados. Os projetos seguem adiante. Por isso, é importante construir outros laços e elaborar outros projetos.
http://territorioslivresdobaixoparnaiba.blogspot.com.br/