Crônica de um anacronismo paulistano

Tadeu Breda

A 20 quilômetros da Praça da Sé, centro de São Paulo, existe um bairro onde é difícil dizer ‘bom dia’. Não por falta de educação, mas por falta de ânimo. E também falta ânimo para descrever aqui, mais uma vez, a deprimência que é ver gente morando em casas de tábua, circulando por vielas de terra, convivendo com esgoto a céu aberto, falta de água, luz, coleta de lixo – de que mais?

A Fazendinha, na zona norte, seria um grande clichê da desigualdade social brasileira, um enclave de pobreza a meia hora do centro da cidade mais rica do país e blá-blá-blá, não fosse esse pedacinho da Brasilândia cada vez mais uma persistente – e inexplicável – exceção na rotina dos paulistanos. “Eu não sabia que ainda tinha lugar assim na capital”, diz Maurete Gomes Pires, que hoje é a líder comunitária do pedaço, mas se espantou quando chegou para ficar, em 2002. “Aqui o povo sofre.”

A Fazendinha não é uma ‘invasão’, é um golpe. Maurete pagou R$ 2 mil em seu terreninho. Foi uma maneira de fugir do aluguel que castigava a renda mensal da família em Diadema, na região metropolitana. Começou a quitar as prestações em 1998, mas dois anos depois a imobiliária que fazia as cobranças desapareceu. Foi atrás de saber e soube que a empresa somava processos judiciais, reclamações, o diabo. “O dono fugiu pro exterior”, foi o que lhe disseram. Os moradores ficaram: os enganados e os que, mais tarde, vieram para ocupar o vazio da maracutaia.

O bairro cresceu. De terrenos esperando construção, no final dos anos 1990, para um conjunto de uns 2 mil barracos em 2012, ano de eleições municipais, vésperas de Copa do Mundo. Hoje a Fazendinha é menos do que uma favela: é uma favela à la anos 1940 cercada por outras do século 21, já asfaltadas, e também pelas árvores cada vez menos numerosas da Serra da Cantareira e por um Centro de Educação Unificado (CEU) que lá no alto do morro mostra que o Estado chegou, mas que foi embora cedo demais.

Maurete simplesmente não entende. “O CEU foi uma bênção, melhorou muito a região”, concorda. Todas as manhãs ela leva o filho pequeno ladeira acima até a escola que é só elogios: as salas são grandes, as crianças vestem uniformes, seguranças fardados guardam as entradas e três piscinas azuis luzem limpinhas com o sol do meio-dia. Isso do muro para dentro. “Por que não urbanizaram nosso bairro quando construíram o CEU? Por que as favelas ao lado têm asfalto, luz, água, coleta de esgoto, e a gente não?”

Lugares como a Fazendinha não se argumentam, não se justificam. É simplesmente anacrônico, uma síntese de cidade que é, mas não deveria. São crianças correndo descalças pelos espaços que sobraram, jovens morgando entre vielas e atrás da escola, mulheres sentadas à porta do que podem chamar de casa, e que respondem simpáticas ao ‘bom dia’ que sai às duras penas da boca dos forasteiros que passam olhando sem expressão.

Como em todo lugar, há risada, há conversa, há carros circulando onde dá pra circular. Há vendinhas, famílias, brigas, drogas, música, sexo. Nesta época também passam por lá candidatos a vereador, e deixam suas plaquinhas penduradas em tortuosas estacas de madeira que servem de postes para a fiação viva que toca a cabeça dos mais altos. Na Fazendinha, enfim, existe tudo o que existe em qualquer bairro rico ou pobre da cidade: só não tem todo o demais mínimo essencial. E faz muita falta.

http://www.latitudesul.org/2012/09/16/fazendinha-cronica-de-um-anacronismo-paulistano/

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